Muito se tem falado sobre “Quo Vadis, Aida?” desde a sua estreia na edição de 2020 do Festival de Cinema de Veneza, passando pela sua estreia em Portugal em meados deste ano.
Para além dos prémios com que tem sido laureado, os últimos dos quais na mais recente edição dos Prémios Europeus de Cinema, foi ainda o candidato da Bósnia ao Óscar de Melhor Filme Internacional, tendo perdido o prémio para “Mais Uma Rodada”.
De estrutura bem definida e rigorosa, “Quo Vadis, Aida?” é um filme de ficção que gira em torno de um acontecimento bem real, traumático e do passado recente da Bósnia, o massacre de Srebrenica.
É quase inacreditável que há 25 anos mais de 8000 homens bósnios tenham sido assassinados e enterrados em valas comuns pelos soldados sérvios, cujo trabalho de limpeza étnica incluiu ainda a violação e a tortura das mulheres que ficaram para trás.
Em território considerado seguro pela ONU, o pior aconteceu com a permissão de muitos envolvidos, tal como é muito bem focado no filme. Esses momentos de decisão – não decisão são, ao mesmo tempo, os mais tensos e aqueles que emprestam ao filme as suas mais marcantes âncoras narrativas.
No centro da história encontra-se Aida (Jasna Djuricic), uma tradutora e professora local que faz o trabalho de traduzir as comunicações entre os locais e os agentes holandeses da ONU na base e no terreno.
Aida, para além de tradutora, é casada e tem dois filhos e terá de lutar pela família tal como todos os envolvidos, ainda que a sua história em particular não seja verdadeira no sentido em que Aida não existiu.
Muitas Aidas, contudo, viveram exactamente o mesmo ou pior que a ficção conta, já que, por exemplo, ainda hoje se encontram desaparecidos milhares de corpos, nunca identificados nas valas-comuns de onde outros foram exumados.
“Quo Vadis, Aida?” é um filme que faz muitas perguntas, mesmo quando não as faz directamente, a começar pelo seu título, e essa é a pergunta que mais o preocupa.
O contar da história real e horrenda que se passou na Bósnia de 1995 serve de contexto, mas nem sempre parece ser o mais importante, por muito contraditório ou polémico que isso possa parecer.
O filme existe para que não se esqueça o passado recente, mas na sua essência o passado é mesmo só isso e, como tal, inalterável, imutável, ainda que na cabeça de muitos ele seja revivido vezes sem conta.
O mais impressionante é a forma objectiva e desassombrada com que se interroga sobre o futuro, na verdade é isso que lhe interessa e antes mesmo do contexto, aponta precisamente para a frente.
“Quo Vadis, Aida?” procura a tradução o mais próxima possível dos sentimentos e o seu impacto nesse aspecto é exponenciado pelo modo como os personagens encaram o espectador.
Inúmeros são os momentos de total silêncio em que quem assiste é deixado cara a cara com as vítimas, as mesmas cuja expressão interroga o mundo, talvez para que não volte a acontecer ou perguntando como é que o mundo deixou que isto acontecesse.
Por entre os escombros iminentes de Srebrenica, uma tradutora tenta salvar a família e há tanto que se perde entre a sua língua e o inglês, entre o seu caso particular e os milhares de famílias anuladas naquele período, não esquecendo que aquele território já antes se encontrava mergulhado em guerra civil.
Sem possibilidade de uma tradução real que reflicta exactamente como e porque razão aconteceu Srebrenica, “Quo Vadis, Aida?” pergunta de forma simples e poderosa qual é o caminho do amanhã.
Ao mesmo tempo, permite o sarar de algumas feridas, que ocorreram parcialmente em tempos recentes para os milhares de Bósnios deixados órfãos das suas famílias.
A estrutura narrativa de “Quo Vadis, Aida?” não traz muita novidade ao cinema, mas é o enormíssimo talento dos seus actores e a gigante estatura emocional do filme que o transformam numa experiência arrasadora.
“Quo Vadis, Aida?” traz consigo uma mensagem real de pacificação que não passa pelo branqueamento da imagem da Sérvia face aos acontecimentos passados, não pode passar pelo esquecimento, assim parece indicar nas suas entrelinhas.
A realizadora Jasmila Žbanić não tem intenção de deturpar os factos, como já assumiu publicamente, e o seu trabalho no filme é também documental e rigoroso, baseado em fontes documentais.
Fora do filme, Jasmila Žbanić admitiu ainda que seria um sinal de mudança se o seu filme fosse exibido em território sérvio, mas até lá ainda um longo caminho terá de ser trilhado.
Para que não restem dúvidas sobre o que se passou, quem hesitou, quem não tomou a acção certa, quem escolheu ignorar, quem morreu, quem foi violado e torturado.
Sem meias medidas, mas não isento de sentimento e, por isso, muito longe de um mero exercício documental, “Quo Vadis, Aida?” é um confronto sério com a mácula de que às vezes para curar muitos preferem esquecer.
“Quo Vadis, Aida?” não quer que se esqueça o que aconteceu e vai mais além disso, procura esclarecimentos, clarificações, verdade, mesmo depois das condenações na justiça.
Para os habitantes da região, Srebrenica está presente, para o mundo talvez seja mais fácil ir esquecendo que depois de tantas experiências de genocídio, infelizmente, as pessoas ainda consigam não identificar os sinais mesmo quando eles estão lá todos.
Inesquecível para o espectador são as expressões dos rostos dos actores que dão corpo às vítimas do genocídio, especialmente na cena da dança em círculo, uma celebração que dá lugar a que se encare sem cinismo, directamente nos olhos dos envolvidos, que os mortos tinham todos um rosto e não foram abstracções.
Aida, encarnada pela brilhante Jasna Djuricic, é inesquecível também pela sua coragem, pelo modo como no meio do caos resistiu à mentira até quando conseguiu. Inesquecíveis os seus olhos de esperança, os seus olhos de dor, a sua mágoa eterna.
“Quo Vadis, Aida?” pergunta como vai ser o amanhã ao mesmo tempo que desenterra os mortos para que vivam novamente e possam fechar este capítulo com a certeza de que Srebrenica não acontece outra vez.