No último filme de May el-Toukhy, “Rainha de Copas“, não consegui encontrar novidades nos seus elementos cinematográficos, narrativos e estilísticos. O filme conta-nos a história amiúde contada sobre um caso de assédio sexual perpetrado por uma pessoa mais velha a outra de idade muito menor, que acaba de entrar na sua maioridade. Porém, apesar desta normalidade cinematográfica, insisto em procurar num filme algo que me possa surpreender; algo capaz de suspender, por momentos, o meu juízo mais instintivo – por curta degustação – de estar perante mais um filme que aparentemente não terá muito para me oferecer. Talvez, por vezes, tenhamos de dizer de certos filmes, como nos momentos constrangedores em que nos impedimos de ser rudes, algo assim: “agrada-me muito a tua maneira de ser”. Na falta de uma evidência de beleza, saltamos para as qualidades morais; na falta de forma, atentamos ao conteúdo. Acredito profundamente que a vitalidade de tudo o que existe não deixa de pulsar nas suas formas. Não é esta natureza vitalista das formas que faz Susan Sontag afirmar: “Em vez de uma hermenêutica, precisamos de uma erótica da arte?”
Apesar de ser apologista da forma e achar que é sempre nesta que reside o pulsar de qualquer fenómeno que se nos apresente, não deixo de atribuir valor à nossa natureza interpretativa, quando esta não se sobrepõe a essa força vital que nos liga de forma mais direta e sensível ao mundo. Ora, o caso de “Rainha de Copas” exige esse esforço interpretativo. Se nem sempre conseguimos dizer que estamos perante um filme genial, isso não quer dizer que deixamos de apreciar a inteligência revelada na forma como a sua narrativa foi construída, como os atores ajudaram que ele ganhasse a espessura necessária para que o filme tenha a coerência suficiente para captar a nossa atenção até ao final. Se, por um lado, as suas qualidades não são suficientes para nos exaltar os sentidos e consciência, por outro, não chegam ao ponto de nos fazer cair num aborrecimento total. Compreendo que para o leitor todo este discurso possa parecer uma maneira, mais ou menos dissimulada, de suavizar uma crítica a um filme que não nos tocou verdadeiramente e para o qual nos falta um elemento passional capaz de colocar a escrita a fluir com o mesmo ímpeto com que um adolescente apaixonado escreve uma carta de amor. E talvez o seja. Porém, pretendo afirmar que um filme é, também, e antes de tudo, um engenho; mas um engenho peculiar, cuja mecânica se esforça para esconder ao máximo todo o rastro que possa oferecer indícios dessa sua origem. E, como o olhar crítico tem uma propensão natural para procurar a sala das máquinas, maior é o regozijo quando um filme nos faz esquecer que essa sala existe.
Não querendo tornar o filme apenas mote para ensaiar questões mais teóricas sobre a natureza da crítica de cinema, pretendo apenas tomá-lo como “filme-exemplo” de competência cinematográfica. Como em cima referi, ele revela coerência na sua estrutura; revela um forte estudo prévio da psicologia das personagens e é bastante eficaz na forma como conseguiu colocar todo esse trabalho em cena. Porque, por detrás de todo o filme, existe um intenso esforço de investigação, de procura de novos conhecimentos, de escrita e aperfeiçoamento de um argumento, de cálculo de possibilidades de abordagem, entre outras tantas tarefas da mesma natureza. Ora, é precisamente este conjunto de elementos pré-fílmicos (pré-experiência concreta do filme numa tela) que compõem o seu engenho cerebral. É a forma como o engenho se reflete no filme que dirá muito sobre a sua natureza. E, se existem filmes que o conseguem transcender de forma brilhante, fazendo-nos esquecer de toda a sua génese técnica e material, outros aplicam-no de forma competente, sem deixar que esse engenho contamine a experiência do filme. Um filme deve pairar diante dos nossos olhos.
O filme de May el-Toukhy não tem essa qualidade espectral, mas também não é destituído de vida. E esta vitalidade – para além de outras razões que em cima já referi – reside muito nos limites de uma narrativa muito bem pensada e pelo exímio trabalho dos atores que a encarnam.
Trine Dyrholm e Gustav Lindh dão voz às personagens Anne e Gustav. Anne é uma advogada que vive com o seu marido e filhas numa casa cuja imponente arquitetura modernista revela o seu sucesso profissional. Gustav, filho de um casamento anterior de Peter (Magnus Krepper) ,acaba por se mudar para casa de Anne para estar mais próximo do pai. Aquilo que deveria ser uma relação baseada num distanciamento moral basilar, ganha contornos lascivos, tanto pela personalidade absolutamente narcísica de Anne, como por uma extrema capacidade de manipulação que lhe está associada.
O filme mostra, desde o início, o bosque que partilha um acesso direto com a casa. O teor naturalista do filme reside nessa natureza em estado bruto que irá contracenar diretamente com o espaço da casa. A presença deste bosque pode ser pensada, deleuzianamente, como o “mundo originário” que contém as pulsões que se irão atualizar sob a forma de comportamentos dentro do “meio derivado” que é a casa. Por um lado, temos o realismo social bem definido pelos papeis sociais das personagens e, por outro, temos o elemento pulsional que vem introduzir-se nesse meio para agir sobre ele e o desestabilizar. É nesse turbilhão pulsional que cai Anne, onde o papel social dá lugar a um puro exercício de luxúria que a personagem irá tentar esconder sem olhar a meios.
É na forma como Anne se torna “personagem-pivô” para dar coesão à narrativa que reside a maior qualidade do filme. Desde o início vemos alguns pequenos traços de personalidade que já são indicadores de uma personalidade extremamente engenhosa e narcísica, como, por exemplo, quando Anne, astuciosamente, descobre que foi o próprio Gustav que assaltou a casa; ou quando revela um pouco do seu narcisismo ao reagir mal perante uma pequena crítica que lhe foi dirigida por um colega de trabalho. Não sendo traços que, por si, possam justificar os atos extremos que acaba por praticar, acabam por dar à narrativa uma maior coesão, justificando melhor o ardiloso exercício de ocultação dos acontecimentos que irá mais tarde levar a cabo. Falando ainda nas qualidades visíveis do filme, não posso deixar de referir a cena em que Anne se aproxima, pela primeira vez, de Gustav para levar a cabo o ato sexual. Esta cena mostra bem a crueza com que a personagem usa o deslumbramento de Gustav para obter prazer. A realizadora deixa claro que estas duas personagens não estão inseridas numa natureza idílica que viria intensificar um florescimento amoroso – como seria o caso de “Chama-me pelo teu Nome”, para referir um exemplo mais recente, ou tantos outros com a mesma essência de um realismo idílico rohmeriano. Neste filme, a aproximação das personagens é tão crua quanto é árida a natureza que os envolve. Não é amor que vemos nascer, mas tão só um ato de luxúria.
Quando este ímpeto extravasa ao ponto de ambos serem vistos por uma amiga que frequentava a casa num dia de festa, Anne, sendo a única que sabe da existência desse olhar, começa a afastar, definitivamente, as investidas de Gustav, fazendo com que este se revolte e revele o caso para o pai. Todo o teatro que Anne irá montar para esconder o caso está muito bem elaborado, onde ela eleva ao máximo a sua natureza, tanto narcísica, quanto astuciosa, capaz de convencer Peter de que é inocente e é vítima de uma invenção de Gustav. Todo este encobrimento progride até ao acontecimento limite de quem já não consegue suportar guardar dentro de si tal verdade e no corpo uma marca tão forte. No final, sabemos que existe uma pessoa que tem sido mimada por Anne para não contar a verdade do que viu na festa a Peter. Pensamos na possibilidade desse testemunho e em tudo o que ele poderá desencadear na direção de Anne. Porém, o final do filme é um outro elemento que deve ser valorizado. Não estendendo o filme na direção da revelação da verdade, onde viria todo o processo judicial que isso acarreta, a narrativa acaba por tornar a personagem de Anne ainda mais poderosa. Quando Peter regressa a casa, Anne lança-lhe uma questão sobre Gustav, esperando persistir ainda a falsidade que montara para enganar Peter. Contudo, o gesto de fúria de Peter é ambíguo. Ele pode revelar tanto um sentimento de culpa por não ter ficado do lado do filho, como um sentimento de impotência perante o poder de Anne, mesmo sabendo a verdade sobre o caso, ou uma reação instintiva perante o facto de, simplesmente, não conseguir saber a verdade. E esta forma de fechar a narrativa dá uma abertura interpretativa que mantém viva em nós a vontade de imaginar o significado daquele gesto e como seria se aquela verdade um dia se revelasse. E, na minha cabeça, não imagino nada menos do que um Michael Haneke, com a mesma força bruta de confrontação com o Outro de um “Nada a Esconder”.
Depois de ensaiar distinções entre “filmes-demasiada-engrenagem”, “filmes-engrenagem” e “filmes-que-transcendem-a-engrenagem” chego à conclusão de que a crítica pode ser uma coisa realmente peneirenta, na medida em que, tal como aquilo que peneira, vive de fazer separações várias para melhor organizar uma sensibilidade. Mas se for peneirenta demais, acaba por revelar mais a impotência de conseguir manter o filme num reino sensível, ao necessitar de escapes mais abstratos. Porém, voltando à ideia que cito em cima, de Susan Sontag – muito inspirada na filosofia de Nietzsche – penso que a melhor peneira ainda é aquela que distingue a vitalidade de um filme que se quer prolongar na nossa sensibilidade palpitando para fora dela em forma de palavras, daqueles em que somos obrigados a recorrer uma linguagem abstrata que esconde mais do que aquilo que mostra e, por isso, sem luz e sem vida. Mas assim é a dinâmica da vida, todo o toque excessivo retira as palavras, assim como a falta de vida se compensa em palavras. Se, para além de engrenagens e aparatos técnicos, um filme tem uma forma simples de revelar o seu valor, será por essa qualidade mágica que os coloca a pairar perante nós e que só uma misteriosa forma de vida consegue dar origem. E, se nem todos nos exaltam e erotizam, nem por isso nos trazem desprazer na altura em que somos chamados a escrever ou falar sobre eles. A crítica não tem nenhum segredo especial. Na verdade, e idealmente, seria sempre a mesma paixão que acabaria por se manifestar nas suas palavras: uma paixão que, na sua forma mais pura e infantil, levaria o crítico a partilhar o mesmo fascínio com que as crianças criam novas palavras para traduzir o (seu) mundo.