Para celebrar o regresso às salas de cinema, o Cinema Sétima Arte convidou personalidades ligadas à sétima arte para escrever um pouco sobre a sua experiência de retorno, agora com as restrições impostas pela DGS devido à COVID-19.
Sem mais demoras, eis o que elas escreveram.
Na tarde do dia 11 de junho tive oportunidade de voltar a uma sala de cinema. Às 18h30, era o aclamado filme, vencedor de um Leão de Ouro, “A Bela de Dia”, que abria a segunda fase do “Ciclo: 25x Buñuel”, no Teatro do Campo Alegre, no Porto. Não poderia pedir por um regresso melhor…
Assim que nos sentámos nas cadeiras do pequeno, e especialmente aconchegante, auditório, ouvia-se uma conversa sobre a proibição de dar as hóstias na boca durante o ritual de comunhão. Ora, sentados naquela sala, e ouvindo aquelas palavras, senti que também nós, espectadores, estávamos todos à espera desse ritual de comunhão. Esperámos sentados pela primeira imagem como se nela todos os olhares entrassem em comunhão: os nossos, os dos atores e um terceiro de presença mais misteriosa, que os une a todos. Se pensarmos em “A Bela de Dia”, este olho seria aquele que se esconde dentro do tilintar dos sinos da carruagem, que vem abraçar todos os elementos do filme. É a sensação de que esse olhar vive dentro de imagens-esconderijo que nos olham de volta, como se nos fizessem olhar uns para os outros para perguntar: “sentiste isto?!”.
É esta força invisível que só se manifesta quando formamos uma comunidade de seres voluntariamente maniatados e afundados nas cadeiras do cinema, prontos a erguer o olhar para receber esse pedaço vivo de luz. E, nesse silêncio, nessa espera, ouvimos as almas sussurrarem para si mesmas: “Serei digno que a tua magia entre na minha morada? Dá-me uma só imagem e serei salvo…”
Cláudio Azevedo – Crítico de Cinema
A transição suave entre o enclausuramento e o dito “desconfinamento” levou-me sobretudo a refletir sobre o afunilamento cinematográfico que Portugal parece evidenciar numa “glória” forma. É como se o Cinema, a experiência em sala, fosse unicamente direcionado e assumidamente uma arte para burgueses ou, simplesmente, privilegiados deleitarem. Nesse sentido, senti-me, como habitante das margens da capital – o residente dos ditos subúrbios – um marginalizado por esse enfoque da projeção. E a minha entrada na “liberdade” teve relação próxima com o meu regresso às ruas de Lisboa, à brisa citadina e ao sol forte em asfalto aquecido, agora mais despovoado do que antes. E foi nesse retorno que o Cinema associa, e como primeira experiência após meses de consumo de streaming e televisão (o facto de ter uma tela e um projetor atenuava esse efeito de “caixa mágica” endereçado à programação televisiva), que cheguei ao Nimas, um dos últimos cinemas de bairro da cidade, para ser presenteado com o restauro em 4K de “A Cidade Branca” (“Dans la ville Blanche”, 1983), do suíço Alain Tanner. Nesta produção de Paulo Branco, somos levados a um dos maiores cobiçadores das vidas alheias no cinema – Bruno Ganz (para quem não se lembra, ele foi o anjo que certo dia desejou ser mortal em “Asas do Desejo”) – que assumiu a pele de um marinheiro que é seduzido pelo exotismo acinzentado de Lisboa. O seu olhar não é mais do que uma “primeira vez” repleta de ostentação. Naquele momento, senti-me como Ganz na sua jornada ao encontro da “imagem perfeita” lisboeta, no seu vasculhar de emoções e lugares, como também faces e corpos, nem que sejam os pertencentes à Teresa Madruga, aqui como a sua hipnotizadora sereia. Porque foi com “A Cidade Branca” que regressei ao cinema e simultaneamente à cidade que tanto amo e que, infelizmente, me permite viver à sua porta. É a tela a dialogar diretamente comigo, a comunicar da única maneira que bem sabe, através de imagens e sons aparelhadas numa narrativa, ou numa não-narrativa, assim como tão bem pretenderem. Enquanto crítico, sempre tive a necessidade de coletar esses visuais e sonoridades na promessa de desvendar o hieróglifo decriptado do meu quotidiano e, através da branca cidade na perspetiva de Tanner, redescobri uma Lisboa “selvagem” que deseja sobretudo voltar a ser explorada (e filmada). E com isto reabre a época do cinema, é só entrar sem medos.
Hugo Gomes – Crítico de Cinema
Independentemente de tudo aquilo com que me ocupei nos últimos meses, lembrar-me-ei sempre de “Surdina”, de Rodrigo Areias, como o filme do fim do meu confinamento e do regresso tímido à sala de cinema (de máscara no rosto e com a “distância social” como mais uma arma de defesa para o meu parco arsenal da sociabilidade de foyer). Apesar de ter passado dois meses a ver dúzias de filmes, a vontade de me sentar nas poltronas de um cinema latejava-me no corpo. Tinha já saudades de sentir o cheiro da alcatifa velha, de dar novas formas ao ritual da compra do bilhete, de me escapulir discretamente durante os créditos e de cumprimentar de longe (ou fazer conversa de circunstância) com algumas (más)caras conhecidas. Até os risos em alturas estranhas, o desconforto das cadeiras e os restolhares no escuro me faltavam. É, no fundo, uma questão de escala: a tela que nos engole, mas também a gente que enche uma sala (e nos enche também, na sua diversidade). Ver um filme a dois ou a três é diferente de ver um filme a trinta ou a quarenta (que é, também, muito diferente de ver um filme a quatrocentos ou quinhentos). São os olhares (as presenças) que fazem do cinema uma arte performativa. São eles que fazem o cinema.
Ricardo Vieira Lisboa – Crítico de Cinema e Programador
Teresa Vieira – Jornalista e Crítica de Cinema