Cada vez que vou ao cinema ver a estreia de um novo filme português é como se levasse um estandarte ao peito, bordado de orgulho por ver na tela o reflexo das “nossas gentes”, das histórias que nos correm no sangue, a gema da cultura do nosso país. Bem sabemos o quão difícil tem sido estabelecer uma posição portuguesa no panorama cinematográfico, e cada nova obra é como um filhote de uma espécie rara. As expectativas são sempre altas, mais ainda quando no seu curriculum consta uma Selecção Oficial no Festival de Cannes. Sinto-me quase na obrigação de gostar daquele filme, de defendê-lo com unhas e dentes, contrariando o possível sentimento de que não foi tão incrível assim.
Foi o que se passou com a longa-metragem “Restos do Vento” do realizador Tiago Guedes.
Fechei os olhos a tudo o que me ia aparecendo sobre o filme na esperança que só ele falasse comigo naquelas duas horas em que estivéssemos reunidos. A sensação de pertencer àquela sala bem composta que abre com grandes nomes no ecrã, Leopardo Filmes… Paulo Branco… CMTV… wait what? Ligeiro balde de água fria, sim, mas quem nunca teve aquele familiar oportunista que nos dá uma nota no Natal para ficar bem na fotografia?… Avancemos.
O filme começa e a tensão é palpável. A distância que nos separa emocionalmente daquelas ruas é ínfima. As paisagens são-nos familiares, a vila poderia ser a dos nossos pais, e até a senhora do café tem aquele sotaque que carinhosamente estimamos. É tudo muito real, natural, sem grandes filtros ou artifícios. O primeiro ato da trama foi, para mim, talvez o melhor de todo o filme. A atenção está ali, encurralada, e o estômago vai-se apertando até ao levantar de saias, nauseando aquela que já nos é (infelizmente) uma sensação familiar, a misoginia.
25 anos depois a história cresce, mas o ritmo abranda. A lentidão tão associada ao cinema português dá de si, típica, característica, não é defeito mas feitio. É para quem gosta de olhar cada pormenor do plano. São pinturas vivas, escolhidas a dedo, que nos brindam com as cores mais bonitas do céu, refletidas no lago, rasgadas pelo canito que o atravessa a nado. São poesia e falam diretamente com os nossos sentimentos. Depois, o Laureano, o personagem mais marcante desta história, um inocente que, fruto da maldade alheia, se tornou mais inocente ainda, um anjo para uns e maluco para outros. Enorme interpretação de Albano Jerónimo, percorrendo os caminhos de terra rodeado de meia dúzia de cães que, convenhamos, fazem as delícias dos espetadores.
O argumento vai perdendo força, torna-se previsível a meio do filme, penso que em muito se deve ao facto de nos terem “roubado” uma das principais cenas deste ato, o momento da morte. O que realmente se passou naquele instante não sabemos, desconfiamos é certo, mas no cinema é importante presenciar para tomar uma posição, viver as sensações que mantêm os laços que nos ligam aos personagens. O final é nos dado umas sequências antes, o tempo que precisamos para nos despedirmos do Laureano, com pena, com angústia, refletindo nas injustiças, na masculinidade tóxica, na moralidade distorcida, nas tradições humilhantes… sobretudo, no ritual do silêncio, ‘o que acontece aqui, morre aqui’.
“Vem o vento do deserto, misturar o errado e o certo
Vem o vento, sopra forte, não é ele que traz a morte
O amor e o desamor, sofrem do mesmo calor
Cala agora o sofrimento, deixa só soprar o vento.”
Se o filme foi incrível como eu esperava? É fácil falar quando se olha para um produto acabado, mas temos que considerar que o processo é altamente complexo. Quem se envolve em produções, por mais pequenas que sejam, sabe bem que fazer uma história funcionar é um desafio. Agora que é um excelente filme português, com muita qualidade nos recursos humanos e materiais, que aposta na simplicidade (que de simples não tem nada), uma fotografia maravilhosa, e que merece o palmarés, é.