Stendhal afirmou: “Foram as outras artes que me ensinaram a escrever”. E, no meu caso, não vejo outra forma de escrever senão pela força que vejo naquilo que me leva a escrever. É esse impulso que transforma a paixão cinéfila em textos e, muitas vezes, em novos filmes – vejam-se os (felizes) exemplos de Godard, Truffaut, Rohmer… É essa ignição, essa pequena faísca que ateia em nós um fogo que faz com que nos descubramos como um corpo vivo – e não como uma consciência abstrata. É este fogo, constituinte ou genético, que a cineasta Céline Sciamma coloca diante de nós no seu mais recente trabalho. É a pintura a arte que a realizadora escolhe para nos dar a ver como entre Marianne e Héloïse se vai acendendo essa chama, capaz de exaltar a beleza de uma imagem e que se vai propagando até consumir um olho que, inelutavelmente, coloca um coração em chamas.
Marianne (Noémie Merlant) é uma jovem pintora francesa, em pleno século XVIII, que é contratada para pintar o retrato de Héloïse (Adèle Haenel), que tem um casamento marcado com um homem que nunca conheceu. Marianne deve pintar o retrato em segredo, apenas observando e acompanhando Héloïse nas suas idas ao exterior.
O secretismo que Marianne guarda em relação ao seu trabalho faz com que tenhamos acesso a uma intensificação contemplativa por parte da pintora. Assistimos a um processo de aproximação de Marianne em relação a Héloïse, ao seu corpo, aos seus traços, aos seus gestos. Sciamma mostra-nos, neste processo de aproximação – que é também conhecimento e aprendizagem -, a antítese daquilo que será o casamento de Héloïse, desprovido de qualquer conhecimento ou sequer um contacto visual com um marido que lhe aparecerá em casa como uma encomenda. É contra esta distância gélida que a realizadora usa a pintura, como um meio que vive da consubstancialidade carnal que existe entre todas as coisas. Todo o filme não é mais do que um louvor ao olhar enquanto gesto, ou uma pedagogia da visão.
A primeira abordagem que Marianne faz é rejeitada por Héloïse, por esta notar, no seu retrato, um tom convencional, distante, excessivamente burguês, abstrato – igual a muitos outros. No quadro de Marianne estava plasmado o cálculo de uma pintora que apenas tem de levar a cabo uma tarefa. A sua contemplação anatómica – e por isso analítica e parcial – não conseguiu abrir o espaço necessário a uma transgressão que fosse além da regra da representação clássica, que exige uma maior semelhança para com o modelo que representa. Porém, é ainda uma semelhança que o artista procura, não a da linearidade abstrata e geométrica dos contornos, capazes de captar a cópia perfeita, mas antes trazer para a sua obra um pedaço da natureza daquilo que representa, uma essência estranha a qualquer ideal abstrato de objetividade assim como aos conceitos ou intencionalidade de uma subjetividade.
É a natureza ígnea do fogo que os olhos de Marianne começam a vislumbrar. A essência deixa de estar localizada, reificada num objeto a reproduzir, encontra-se antes numa natureza misteriosa cuja significação emudece para se fazer sentir. O espaço onde arde, na noite, o fundo do vestido de Héloïse ou o das suas aparições é um espaço fantasmático entre a nudez do real e uma consciência que tudo quer assimilar e sintetizar. É nesse espaço que o olhar encontra o ápice da sua natureza mágica, onde as coisas se desprendem dos grilhões da gravidade para se libertarem de si mesmas e caírem levemente por entre as tintas que se agarram aos fios de um pincel – assim como no composto químico de uma película.
Marianne e Héloïse entraram no lugar onde as coisas ardem. Este lugar é contrastante com esse outro, mais escuro, onde Héloïse se encontra condenada a um casamento com um homem que não ama e com o qual nunca escolheu viver. É neste lugar que Marianne mergulha para, tal como Orfeu, resgatar Heloïse desse mundo onde a vida não pulsa. O mito de Orfeu e Eurídice surge como metáfora para o amor, o amor como resgate, o amor de quem não resiste em lançar o olhar na direção do ser amado, nem que seja para o fixar numa memória indelével.
O filme de Sciamma mostra-nos como o amor, a vida e a morte habitam dentro do olhar. E que só um olhar envolto por chamas poderá ter a felicidade que é habitar as coisas e amar as pessoas. Esta pedagogia do olhar flamejante é aquela que aprendemos com as artes e que pretende tornar todos os movimentos rígidos e frios na pureza que existe dentro do gesto. Ironicamente, em pleno século das luzes, Sciamma consegue mostrar-nos que a verdadeira emancipação, afinal, é aprender a ver.