Em Maio passado, de entre a centena de filmes que participaram no Festival de Cannes, “Rocketman” teve a sua estreia mundial. Apesar de exibido fora de competição, este musical sobre a vida de Elton John deu mais que falar do que muitos concorrentes à Palma de Ouro. Tal em grande parte se deveu à performance contagiante de Taron Egerton (“Kingsman: Serviços Secretos”, de Matthew Vaughn) no papel do cantor inglês.
“Rocketman” narra a vida de Elton desde a infância na década de 50 até ao início dos anos 80. Os vinte minutos iniciais são, de longe, a pior parte. O filme abre com um número musical (“The Bitch Is Back”) que faz uma transição terrível entre Elton adulto numa terapia de grupo e Elton criança na pequena cidade de Pinner. O breve dueto entre os dois Elton é verdadeiramente doloroso. Pouco depois temos mais um mau momento, ao som da canção “I Want Love”, em que ora canta Elton, como cantam pai, mãe e avó. É uma cena constrangedora de tão má que é.
O filme parecia estar condenado, depois deste início pavoroso. Eis que Egerton entra em cena com “Saturday Night’s Alright for Fighting” – uma verdadeira lufada de ar fresco. Não é um exagero afirmar que Egerton é o único que impede a desgraça total em “Rocketman”. O seu desempenho é energético e vai muito além da mímica. Mérito é também devido por cantar todas as canções incluídas no filme, mas escusado será dizer que a voz de Elton John dá vinte a zero à sua. Justiça só seria possível se o próprio Elton fizesse de Elton. Eis o problema com estas adaptações ao cinema: ou o actor não canta e é criticado pelo playback, ou canta e é criticado por não fazer jus ao artista. É um dilema – e falha – que os biopics musicais nunca conseguirão ultrapassar.
O argumento não ajuda o elenco, visto que todas as personagens secundárias são unidimensionais. A sua maior falha, porém, foi a de abranger quase quatro décadas da vida de Elton – o que provou ser demasiado. Não só as cenas de infância e adolescência são sofríveis, como várias fases da vida do cantor são irrelevantes e abordadas à pressa. O melhor exemplo é a inclusão no guião do casamento de Elton e Renate. O cantor conhece-a num estúdio, a cena seguinte é o casamento, e na subsequente a separação. Cinco minutos que bem podiam ser eliminados.
É importante destacar, pela negativa, uma particular cena de “Rocketman”. A dada altura do filme, Elton tenta suicidar-se com comprimidos (spoiler alert: ele sobrevive). O problema? O filme transforma a tentativa de suicídio num número musical. É chocante que uma situação tão delicada como um suicídio seja examinada como se de mais uma musiquinha se tratasse. O elenco a dançar e Elton no meio, às portas da morte.
Há que confrontar “Rocketman” com o filme “Bohemian Rhapsody”. A comparação é inevitável, nem que seja pelo facto de Dexter Fletcher ser o realizador do primeiro e o produtor executivo do segundo.
Comecemos pelo género. “Bohemian” é um filme musical, mas não um musical per se. Os momentos musicais surgem quando a banda está a compor canções ou de performances em palco. Já “Rocketman” é um musical puro, no sentido em que as personagens cantam e dançam do nada – algo que poderá afastar certos espectadores, eu inclusive. Enquanto “Bohemian” dá espaço a cada canção, “Rocketman” tenta incluir o maior número de canções possível. Para tal, as canções são incorporadas na narrativa e frequentemente apenas um excerto é usado, não a sua duração completa. É uma técnica que assume que a interpretação da letra é aquela e só aquela. Não só elimina o misticismo entre música e letra, como o público é privado de ouvir a canção completa. É a mesma frustração de estar no carro e alguém mudar a estação no rádio. Pai, eu estava a ouvir a canção! Nem falo da ausência por completo de “Candle in the Wind”, uma das canções mais icónicas de Elton John. É como ir a um concerto de The White Stripes e não tocarem a “Seven Nation Army”.
Avancemos para a classificação etária. “Bohemian” foi alvo de crítica pela forma como suavizou a extravagância – e homossexualidade – de Freddie Mercury, de forma a cumprir com o escalão etário PG-13 (maiores de 13 anos). Já “Rocketman” não foge da vida airada que Elton levou, não hesitando em mostrar nudez, sexo e drogas. Obteve, por isso, uma classificação R (maiores de 17 anos), o que por certo faz mais justiça a Elton, do que “Bohemian” fez a Mercury. O filme inclui até uma cena sexual que – apesar de não ter nada de gráfico e de durar uns 20 segundos – é revolucionária: constitui a primeira vez que um grande estúdio de cinema figura sexo homossexual. É um primeiro passo que “Bohemian” se recusou a tomar.
“Rocketman” é um musical desequilibrado que só entra nos carris quando Egerton sobe ao palco. A sua energia e dedicação são imensas, mas não salvam um filme que capta apenas a exuberância de Elton John, não o sentimento nem a empatia que o cantor merecia. Garantidamente sai-se da sala de cinema a cantarolar as canções de Elton John, mas para isso bastava ir ao Spotify.