“Room without a view”, de Roser Corella, aborda a vida de trabalhadoras domésticas migrantes que moram no Líbano sob condições frequentemente análogas à escravidão.
Roser Corella interessa-se sobretudo nas problemáticas do sistema capitalista globalizado, com foco nas questões de direitos humanos. Foi quando viveu em Bangladesh que conheceu diversas histórias de exploração e desumanização de mulheres migrantes que realizaram o serviço doméstico no Médio Oriente — região em que há cerca de 25 milhões de mulheres migrantes, a maior proporção de trabalhadores migrantes do mundo.
No Líbano, o trabalho doméstico é coberto pelo quadro legal do Kafala system — sistema criado nos anos 1950 com o objetivo fomentar rapidamente o país com mão de obra rotativa e de curto prazo em períodos de expansão económica. Na prática, o sistema alinha-se com um estado repressor em relação aos trabalhadores migrantes, criando oportunidades fáceis para explorá-los, e protegendo os agentes e empregadores, tornando-se, assim, um problema de tráfico de pessoas. Além disso, as trabalhadoras domésticas estrangeiras encontram-se desamparadas pela lei e pelos seus próprios países. Restam a elas contarem umas com as outras e com o apoio de ONGs e de associações feministas que lutam pelo fim do Kafala system e por melhores condições laborais.
A ser exibido no Festival Olhares do Mediterrâneo no próximo sábado, dia 19 de novembro, o documentário abre a porta para o Debate Travessias, intitulado “Por trás das persianas e redes internacionais: Trabalho doméstico e tráfico de pessoas”, com investigadores e trabalhadoras representantes de sindicatos e associações de trabalho doméstico.
Nos seus filmes, você procura abordar questões relacionadas às opressões de género que estão ligadas a problemas sistémicos provenientes do capitalismo e da globalização. Como interessou-se especificamente pela realidade das trabalhadoras domésticas migrantes no Líbano?
O capitalismo teve sempre um parceiro oculto: a mulher que faz trabalho doméstico não remunerado. Mas mesmo remunerado, ainda não é um ofício valorizado, e este é em parte o problema raiz do racismo, da discriminação e da exploração das trabalhadoras domésticas estrangeiras em muitos países de todo o mundo, como parte do sistema capitalista globalizado.
Iniciei este projeto há alguns anos em Bangladesh, onde estava a trabalhar noutro documentário na altura. Lá, descobri que muitas mulheres migram para o Médio Oriente, especialmente para o Líbano, e o serviço doméstico tornou-se uma das principais fontes de rendimento para o país. Fiquei impressionada com a quantidade de dinheiro e pessoas envolvidas neste fenómeno migratório associado ao trabalho doméstico feminino.
Comecei a entrevistar mulheres que tinham regressado do Líbano e todas elas me falaram de experiências muito duras e terríveis. As mulheres que migram de países asiáticos e africanos não recebem proteção nem dos seus próprios governos nem daqueles onde fazem o seu trabalho. O nível de abuso e de desumanização que elas sofrem pode atingir níveis horríveis. Embora as condições variem, não é raro que sofram condições de semiescravidão, incapazes de sair livremente da casa dos seus empregadores.
No Bangladesh então, decidi seguir o rasto das mulheres que planeavam viajar para o Líbano. Percebi que a maioria destas mulheres são recrutadas em zonas rurais e não tinham informação suficiente sobre as condições laborais que as esperavam no Líbano ou as agências mentiam-lhes sobre o trabalho que iam fazer. Assim, este negócio torna-se um problema de tráfico de pessoas, mas coberto pelo quadro legal do Kafala system, o que torna possível uma total impunidade para agentes e empregadores. É um sistema que promove o racismo, o abuso e a exploração. Fiquei chocada quando descobri um sistema que promove novas formas de escravatura.
Pelo menos desde o início do século XXI, muitos filmes de diferentes partes do mundo têm dado destaque a histórias que se centram em trabalhadoras domésticas (tais como “A Simple Life” (2011), “The Help” (2011), “Que Horas Ela Volta?” (2015), “Roma” (2018), “Overseas” (2019), para citar alguns), o que parece configurar um novo fenómeno cinematográfico. A que você atribui este interesse dos cineastas?
O serviço doméstico tem sido sempre um dos trabalhos menos valorizados, nem sequer considerado um “emprego”. E como consequência, as trabalhadoras domésticas têm sido e continuam a ser as trabalhadoras invisíveis que são “parte da casa”, mas que fazem o serviço indispensável para que a economia de uma família, e por extensão, de uma cidade, de um país, continue a funcionar: manter a casa limpa e arrumada, limpar a roupa, fazer compras, cozinhar, fazer babysitting se necessário, e inúmeras outras tarefas. Dados os laços históricos entre migração e trabalho doméstico, não há dúvida de que este trabalho tem servido durante muito tempo como um bilhete de viagem. Para as mulheres de todo o mundo, o trabalho doméstico tem sido o emprego sempre disponível.
Como cineastas, o nosso trabalho é olhar para onde os outros não olham, dar destaque àquelas que na realidade têm sempre papéis secundários. E a indústria cinematográfica sabe que o entretenimento tem o poder de moldar realmente a forma como vemos e como nos sentimos em relação a diferentes questões sociais. Os defensores das trabalhadoras domésticas acreditam que a mudança da narrativa cultural em torno de babás, cuidadoras e limpadoras de casas poderia ajudar a influenciar a mudança política.
Logo no início de “Room without a view” há uma cena das trabalhadoras domésticas migrantes no karaoke e numa aula de dança a divertirem-se umas com as outras. Esta é a única cena em que elas aparecem num momento de lazer. Pode falar-nos um pouco das suas decisões estéticas sobre a forma de apresentar esta realidade?
Sim, a primeira cena de trabalhadoras domésticas a gozar o seu dia de folga é por vezes espantosa ou contraditória para alguns espectadores, uma vez que é a única cena que as mostra no seu tempo livre (aquelas que têm a sorte de ter um “dia de folga”, que não são muitas). No Líbano, trabalhar para uma família que dá um dia de folga é quase um luxo, considerando que a maioria das trabalhadoras migrantes trabalha 24/7, e muitas não são sequer autorizadas a sair de casa sem serem acompanhadas por um membro da família. Este controlo e falta de liberdade transforma-as em pessoas dedicadas exclusivamente ao serviço, porque as famílias só as tratam nesta perspetiva, como se fossem um “robô” nascido para trabalhar.
Durante o tempo em que trabalhei neste filme conheci muitas mulheres que aproveitaram o seu dia de folga para conhecer outras mulheres do mesmo país, celebrar aniversários, ir ao karaoke para cantar, ou dançar canções africanas. Podia-se ver nos seus rostos a alegria daqueles momentos em que se ligavam novamente ao seu verdadeiro eu, à sua cultura, ao seu desejo de viver fora da esfera da casa, onde são tratadas com inferioridade, sem empatia, sem ter em conta que são também mulheres com uma vida que deixaram para trás, com sonhos, com medos, com a riqueza cultural dos seus países de origem. E esta é uma faceta que as famílias para as quais trabalham desconhecem totalmente.
Queria criar esta cena no início do filme para que o público se ligasse a elas, com o seu verdadeiro eu, querendo ser elas próprias: cantar, dançar, conhecer amigos como qualquer pessoa pode fazer no seu tempo livre. Porque no resto do filme elas seriam retratadas dentro de casa, com o seu papel de “trabalhadora submissa sem direitos”, sofrendo um tratamento desumanizado em muitos casos. Para mim foi importante mostrar este outro lado.
A cena em que a empregada limpa o chão enquanto a patroa está no sofá a ver televisão é muito simbólica e parece condensar muitos problemas sobre a relação estratificada entre patroas e empregadas, o que também envolve a relação entre classe e raça. Como se preparou para filmar as empregadas enquanto elas trabalhavam? Como elas sentiram-se diante da câmara?
Esta cena para mim é realmente uma imagem clara da relação entre patroa-empregada, uma relação de poder hierárquico de classe, raça, que é o que determina o sistema. Devo dizer que filmar essa cena foi um dos desafios mais difíceis deste documentário, obter a permissão das famílias para filmar nas suas casas enquanto as empregadas trabalhavam (e obviamente também com a permissão das trabalhadoras). Conseguir este tipo de cenas era uma questão de tempo e de paciência.
Passei muito tempo em Beirute, já lá vivia há um ano e depois passei mais dois anos a ir para lá durante alguns meses para trás e para a frente. Assim, fui construindo gradualmente a minha rede social de contactos que me levou a ter acesso às pessoas apresentadas no documentário. Três em cada quatro famílias no Líbano têm uma empregada residente, pelo que perguntei continuamente aos meus contactos se tinham familiares ou amigos com quem pudesse falar e compreender a relação que tinham com a empregada residente. Comecei a entrevistar as famílias sem a câmara, apenas com um microfone, e desta forma foi muito mais fácil para elas abrirem-se e serem honestas sobre as suas experiências como mulheres migrantes. Muitas não queriam falar em frente da câmara, por isso continuei a gravar entrevistas até encontrar alguém que me deixasse gravar com a câmara. Até que consegui convencer algumas a trazer um dia a câmara comigo e filmar um dia normal de trabalho da empregada doméstica em casa. A cena foi tão natural que até fiquei chocada com a normalização deste tipo de relações de poder entre patroa-empregada.
Para além das cenas dentro das casas, há também muitas cenas da paisagem da cidade, onde o velho e o novo coabitam. Tal como há edifícios antigos, destruídos pela guerra e tomados pela natureza, há também edifícios novos e luxuosos que ainda têm um minúsculo quarto de empregada. Como esta ambivalência arquitetónica está em diálogo com a experiência das empregadas domésticas migrantes?
Eu queria que a cidade desempenhasse um papel importante no filme porque para mim era uma metáfora visual clara para o sistema abusivo, racista, discriminatório e a sociedade distópica dentro deste sistema. O filme pretende ser uma visão geral do desenvolvimento urbano de Beirute, como uma estrutura física onde milhares de trabalhadoras domésticas chegam todos os anos, mas se tornam invisíveis, engolfados pela estrutura da cidade e pelas suas camadas complexas da paisagem social. A sociedade não as acolhe para fazer parte da vida da cidade, pelo que o sistema foi concebido para esconder estas mulheres atrás de portas fechadas. A maioria destas trabalhadoras estrangeiras não está autorizada a sair da casa dos seus empregadores, onde o “quarto da empregada” está concebido também para não perturbar as voltas diárias dos residentes e é rapidamente normalizado. A arquitetura resultante é um exemplo de exclusão e racismo, com a sua invisibilidade forçada atrás de múltiplas camadas de barreiras arquitetónicas.
Embora o seu filme seja um documentário colado à realidade, com relatos em primeira pessoa, o artificial aparece sempre quando uma câmara é ligada. O que tem de ficcional no seu filme? Que critérios utilizou para escolher quais histórias partilhar?
A famosa frase de John Grierson deixa claro que “o documentário é o tratamento criativo da realidade”, com ênfase no criativo. A partir do momento em que uma história é escolhida para contar, há uma escolha de personagens, lugares, uma linguagem visual particular. Fazer este filme, que apresenta um acesso difícil ao tema, foi um desafio contínuo em termos de encontrar uma forma de contar a história sem utilizar em demasia os talking-heads. Trata-se de um tema complexo, pelo que decidi criar um diálogo simbólico entre as partes envolvidas (trabalhadoras, empregadores, agências e instituições oficiais), bem como explorar a questão a partir de diferentes perspetivas: formar os padrões arquitetónicos, o sistema patriarcal, a perspetiva destas trabalhadoras invisíveis na cidade, e o Kafala system como uma estrutura de poder que promove o racismo, o abuso e a exploração. Este foi um grande desafio criativo quando se tratou de encontrar os elementos visuais que ilustrassem toda a informação que eu estava a recolher.
Muitas vezes houve entrevistas em que só tinha o áudio porque as famílias tinham concordado em ser entrevistadas anonimamente sem mostrarem os seus rostos perante as câmaras. Achei interessante usá-lo como “voz da sociedade” e dar o protagonismo às trabalhadoras domésticas que são normalmente a parte invisível da sociedade, mostrando os seus rostos, confrontando o seu olhar diretamente com o público, uma forma de dizer “olhe para mim, eu sou uma pessoa como tu”.
Durante os anos que pesquisei sobre este tema, encontrei toda a gama de trabalhadoras, desde as que tiveram uma boa experiência com as famílias até ao conhecimento de histórias horríveis de abusos reais e de abusos consumados, que era o outro extremo. Mas percebi que em todas as histórias, mesmo no melhor dos casos, havia sempre a sombra do sistema que limitava a liberdade das trabalhadoras, obrigando-as a viver com os seus empregadores, confiscando os seus passaportes, e obrigando-as a trabalhar sem uma lei trabalhista para as proteger. Assim, penso que o meu filme é basicamente sobre o Kafala system, e não sobre os casos específicos das mulheres que aparecem como as principais vítimas desse sistema. Trata-se de um problema sistémico.
Ao longo do filme, o único momento de esperança de que esta realidade possa mudar é no final, com o protesto das trabalhadoras domésticas a exigirem o fim do Kafala system. Mas pouco depois, a realidade cruel regressa e o filme termina com a sequência de uma jovem que se prepara para migrar para o Líbano, sonhando em angariar dinheiro para continuar os seus estudos. A tragédia anunciada parece anular qualquer possibilidade de mudar a realidade concreta destas trabalhadoras migrantes, o que me leva de volta ao título do filme: “Room without a view”. Não ter uma visão também parece ser uma desesperança em relação ao futuro destas mulheres. Poderia dizer-nos um pouco sobre a sua escolha de como terminar o filme?
Escolhi este final porque ele mostra a dura realidade tal como ela é. Apesar dos esforços de muitos ativistas e ONG, o Kafala system continua a recrutar trabalhadoras domésticas na Ásia e África que chegam todos os dias ao Líbano sem qualquer informação real sobre as condições laborais que as esperam.
Desde que comecei o documentário até agora, tenho visto um grande aumento de movimentos feministas, bem como campanhas contínuas pedindo ao governo para abolir o Kafala system e para incluir estas trabalhadoras domésticas migrantes num regime laboral como outros trabalhadores do país, de modo que tenham um mínimo de direitos. Assim, há cada vez mais apoio de alguns sectores da sociedade, o que é fantástico. Mas de momento o governo não está interessado em mudar nada porque é um grande negócio para eles.
O Líbano deveria formar rapidamente um governo com espírito reformador para implementar reformas urgentes, mais inclusivas das mulheres a todos os níveis da sociedade, político, laboral, etc. É tempo de abolir o Kafala system. Mas apesar da pressão das ONG e outras instituições em defesa dos direitos das mulheres migrantes, o governo responde sempre que tem outras prioridades na agenda.