Conhecido sobretudo como documentarista, com mais de 30 filmes, o cineasta teve 22 anos de “castigo” sem receber nenhum apoio à produção de filmes: “Ainda hoje vejo académicos branquearem a história do cinema ao não mencionarem os meus primeiros filmes como filmes sobre o 25 de Abril.”
Completados 80 anos de vida e 50 anos de carreira, no passado dia 20 de março, Rui Simões é uma das grandes referências no documentário português, conhecido pelas obras políticas e sociais como “Deus, Pátria, Autoridade” (1976), “Bom povo português” (1980), “Ilha da Cova da Moura” (2010), “Guerra ou Paz” (2014), “Alto Bairro” (2014), “A Casa” (2016) ou “No País de Alice” (2021).
No entanto, o realizador sente-se castigado pelo Instituto Português de Cinema (ICA), que durante mais de 20 anos não lhe atribuiu qualquer apoio à produção de filmes, apesar de “ter concorrido sempre com projetos de filmes de documentário e de ficção”, segundo afirmou o próprio. Simões considera que o seu “cinema é valorizado sobretudo pelo público que o vê”. Considerado um documentarista, “categoria para onde me empurraram, vi todos os meus projetos recusados ao longo de 40 anos. Não me vou pronunciar mais sobre esta aberração, é uma atitude política.” O certo é que o nome de Rui Simões consta nos livros de história do cinema português e o seu trabalho continua a ser objeto de estudo e visto pelo público.
Nasceu em 1944, em Lisboa, começou a “trabalhar muito novo, e, correndo pelas ruas de Lisboa, levava barras de ouro para entregar às joalharias da cidade”, segundo consta na sua biografia.
Fugiu da guerra colonial e viveu exilado em França e depois na Bélgica. Viveu intensamente o Maio de 68 e ingressou, por mero acaso, no curso de realização de cinema e televisão no Institut des Arts de Diffusion em Bruxelas, definindo o seu futuro como cineasta até aos dias de hoje. Regressou a Portugal em maio de 1974, vindo logo a seguir a realizar alguns dos mais icónicos filmes do pós 25 de Abril.
Foi neste ambiente pós-revolução do 25 de Abril que Rui Simões iniciou a sua carreira de realizador, com três documentários a propósito da revolução: “Deus, Pátria e Autoridade” (1976), um filme de montagem que mostra “o fundamento do regime fascista durante os seus 48 anos de existência até ao 25 de Abril de 1974.”; “São Pedro da Cova” (1976), três curtas-metragens de 15 minutos cada sobre a vila mineira chamada São Pedro da Cova. 40 anos depois Rui Simões viria a reencontrar-se com estas imagens no filme “Do Carvão aos Resíduos – O Regresso a São Pedro da Cova” (2018), para falar sobre os resíduos tóxicos que ali foram depositados; e “Bom Povo Português” (1980), a segunda longa-metragem de Rui Simões, em que faz uma leitura histórica e crítica ao processo revolucionário, de como a democracia portuguesa foi construída e naquilo que se tornou.
Estas obras integram assim um conjunto de filmes militantes que os anos da revolução trouxeram ao cinema português, aquilo a que Catarina Alves Costa chamou de “olhar revolucionário, fruto do movimento de urgência e de vontade de registo que se criou logo a seguir ao 25 de abril de 1974, e que, não durando mais do que dois anos, subvertia as formas de produção do cinema português.” (livro “Cinema e Povo – Representações da Cultura Popular no Cinema Português”, 2021, Edições 70)
Com a revolução do 25 de Abril de 1974 a acontecer nas ruas, o cinema português sentiu a urgência em também sair à rua e registar a memória histórica do presente. Era preciso filmar a revolução em curso e os seus protagonistas, dando assim início ao cinema militante e ideológico em Portugal. Rui Simões
Em 1986 criou a Real Ficção, uma Produtora de Audiovisual a partir da qual viria a produzir a maioria das suas realizações como documentarista, focando-se sobretudo em assuntos sociais e na arte. A Real Ficção produziu também filmes como “Lisboa Domiciliária” (2009) e “Quem vai à guerra” (2011), ambos de Marta Pessoa, “Cartas de Angola” (2011), de Dulce Fernandes, “Pele de Luz” (2018), de André Guiomar, “Casa Velha” (2020), de César Pedro, “Portunhol” (2022), de Ana Delgado Martins, entre muitas outras produções.
“50 anos depois do 25 de Abril a esperança de dias melhores continua”, afirma o cineasta português que assinala igualmente 50 anos de carreira e que se estreia, finalmente, na ficção com “Primeira Obra”, um filme semi-autobiográfico, onde a realidade e a ficção se cruzam.
Produzido pela Real Ficção, o filme segue a história de Michel, um jovem estudante luso-descendente que investiga o cinema português da Revolução que ficou por cumprir, partindo do documentário “Bom Povo Português”, para traçar paralelismos com a contemporaneidade.
Apresentado no Festival IndieLisboa 2023, teve a sua ante-estreia no passado dia 20 de março, na Cinemateca Portuguesa. “Primeira Obra” estreia comercialmente a 25 de abril nas salas de cinema nacionais.
Aos 80 anos de idade, Rui Simões afirma que “ainda gostaria de fazer mais um filme mas não um documentário, seria uma ficção mais próxima da ficção científica do que da realidade.”
O Esquerda.net entrevistou o realizador Rui Simões.
“Bom Povo Português” é provavelmente a sua obra mais popular, é estudada nas escolas de cinema e é um documento histórico fundamental para compreendermos a situação social e política de Portugal durante o PREC. Considera que esta obra influenciou o género documental do cinema português?
Não tenho nenhuma ideia se este filme influenciou o género documental do cinema português.
Nos últimos minutos de “Bom Povo Português”, uma família portuguesa janta pacificamente à mesa e os mais novos abrem os presentes de Natal junto à lareira. Otelo assiste na televisão à posse do General Eanes como Presidente da República, o seu adversário. Numa escola primária, uma professora pergunta aos alunos porque é que as pessoas morrem, ao que um responde “por trabalharem muito”. Apesar do olhar mais melancólico do que foi o PREC, o filme termina com alguma esperança, com o olhar das crianças, o futuro do país. Essa esperança mantém-se hoje, 50 anos depois?
A esperança existe sempre, mesmo depois de uma desilusão, derrota ou catástrofe, o povo diz que “a esperança é a última a morrer”. 50 anos depois do 25 de Abril a esperança de dias melhores continua, isso não quer dizer que terá que ser idêntica à que tínhamos naquela altura. 50 anos são muitos anos e compete às novas gerações encontrarem os caminhos da evolução. Nestes últimos 50 anos muita coisa positiva foi feita e devemos continuar a ter esperança no futuro.
Passados 50 anos depois do 25 de Abril, temos nas ruas outro tipo de manifestações. A euforia pela liberdade não é de todo a mesma, mas hoje temos mais partidos políticos com representação na Assembleia da República, temos manifestações pelo direito à habitação, greves dos professores e dos profissionais de saúde, manifestações das forças de segurança, marchas feministas, pelos direitos LGBTQIA+ e pelo clima. Que filme seria o “Bom Povo Português” se fosse feito hoje em 2024? Que momentos históricos poderiam ser incluídos?
Essa é a pergunta que já não me faço, mas que faz o jovem Michel, personagem principal do meu novo filme “PRIMEIRA OBRA” (um jovem luso descendente estudante de cinema vem a Portugal pesquisar sobre o cinema militante e sobre o meu trabalho para preparar um doutoramento sobre o filme “Bom Povo Português” e centra nessa pergunta a sua preocupação), mas a minha resposta é simples: compete-lhe a ele encontrar a solução. Eu, hoje com 80 anos, ainda gostaria de fazer mais um filme mas não um documentário, seria uma ficção mais próxima da ficção científica do que da realidade. A realidade neste momento pouco me diz, a não ser como objeto de estudo para preparar um novo filme de ficção.
Teve a oportunidade de viver intensamente o Maio de 68, em França, e a Revolução dos Cravos, em Portugal. Que lições e influências lhe deram essa experiência única de ter vivido uma das revoluções mais marcantes da Europa?
Foram ambas importantes mas muito diferentes. Maio de 68 foi a conquista da liberdade individual, enquanto que o 25 de Abril teve múltiplas consequências, foi a queda do fascismo, a independência das colónias e a tentativa de levar até ao fim esta ideia de Revolução que andava no ar naquele tempo.
Na sua biografia faz questão de referir que “entre os anos de 1980 e 2002” não recebeu nenhum apoio à produção de filmes do Instituto Português de Cinema (ICA). A que atribui essa discriminação pelo ICA? Acha que o seu cinema não é suficientemente valorizado em Portugal?
Foram 22 anos de castigo apesar de ter concorrido sempre com projetos de filmes de documentário e de ficção. Talvez um dia haja um jovem que fará um estudo para compreender melhor o que se passou. Ainda hoje vejo académicos branquearem a história do cinema ao não mencionarem os meus primeiros filmes como filmes sobre o 25 de Abril. O meu cinema é valorizado sobretudo pelo público que o vê.
Considera que ainda existe hoje um cinema militante no cinema português? Com a extrema-direita em crescimento em Portugal e um pouco por todo o mundo, não urge a necessidade de se fazer esse tipo de cinema, de denúncia e de esquerda?
Acho que continua a ser necessário denunciar as injustiças e isso só pode vir da esquerda, a direita, e em particular a extrema-direita, usa e abusa do discurso da denúncia e age como militante de causas que não são as suas, não lhes pertencem, mas servem para mobilizar os insatisfeitos do sistema na conquista de votos para conquistar o poder. Acho que o futuro já chegou, a repetição da História já está aí, e vamos ter que nos habituar a esta nova forma de fascismo, mais conhecida por populismo.
Quando a social democracia, tantos anos no poder, não resolve os problemas das pessoas e sendo ela identificada com a esquerda, é a esquerda toda que paga a fatura do descrédito. É o bom povo que vota, decide e, quando é preciso, castiga.
Aos 80 anos de vida e 50 de carreira, estreia finalmente a sua primeira longa-metragem de ficção, “Primeira Obra”. Numa entrevista dada em 2020 disse ter “pena de não ter conhecido os atores portugueses”. Porque teve de esperar tantos anos para experimentar a ficção no cinema, quando desde 1986 tem uma produtora cujo nome é “Real Ficção” e se a realidade é uma construção/interpretação do real, acaba por ser também uma ficção? A fronteira entre o documentário e a ficção é muitas vezes ténue, porque todo o cinema é manipulado, tem um ponto de vista, e várias interpretações.
A Real Ficção foi a solução que encontrei para regressar ao cinema de onde nunca devia ter saído. Depois de anos difíceis para sobreviver, fui trabalhar como Diretor de Produção e Assistente de Realização em produções internacionais antes de decidir montar a produtora. Ironia do destino o nome escolhido para a produtora acompanhou-me sempre, mais presente no real do que na ficção, embora hoje, ao fim de 40 anos, a Real Ficção seja uma produtora de referência na produção cinematográfica, não foi fácil chegar à produção e realização de ficção. Sendo considerado um documentarista, categoria para onde me empurraram, vi todos os meus projetos recusados ao longo de 40 anos. Não me vou pronunciar mais sobre esta aberração, é uma atitude política.
“No mundo realmente reinvertido, o verdadeiro é um momento do falso”, (Guy Debord) esta frase é lida por Michel numa das cenas do filme e de certa maneira obriga-nos a pensar sobre o real e a ficção.
Quais as suas grandes referências cinematográficas e que o inspiram a fazer cinema?
As minhas referências no Cinema são inúmeras, diferentes, dispersas e por vezes contraditórias. Gosto de muita coisa, vejo muita coisa, mas claro, há sempre nomes que me despertam mais interesse, a começar por Vertov e Godard, Fellini e Visconti, Glauber e Guzman, Fassbinder e Pasolini, Ozu e Cassavetes, Orson Wells e Eisenstein, G.Reggio e Carmelo Bene, Rouch e Ivens, Wiseman e Farocki, etc… a lista não tem fim. Todos me podem influenciar de uma maneira ou de outra, mas na hora de fazer, tenho que ser eu a decidir, por mais influências que possa ter, e gosto muito de me libertar das referências e procurar as soluções do momento, com especial prazer no improviso.