Scorsese e as plataformas de streaming: as palavras e os atos

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Martin Scorsese escreveu recentemente para a Variety um texto onde explica a sua opinião acerca das plataformas de streaming. Este texto tem calcorreado mundo e feito correr bastante tinta. O Cidadão Cinéfilo não poderia deixar de dar um ar de sua graça sobre o assunto. Não só porque respeita o “tio Marty” e a sua obra (e sabe que quando ele fala, nós escutamos), mas também porque a ironia de toda a situação é bastante evidente.

Apesar da sua avançada idade e estado de maturidade da sua obra, Scorsese foi, provavelmente, um dos pioneiros a aderir aos termos e condições das plataformas de streaming. Sem o seu exemplo, possivelmente outros nomes de peso semelhante não teriam enveredado pelo mesmo caminho. Scorsese não é o mais galardoado dos cineastas da sua geração, mas as suas obras (muito diferentes e muitos semelhantes entre si) ganharam estatuto de culto. 

O seu nome, fruto da sua longa carreira (menos linear do ponto de vista do financiamento e das condições de produção do que possa parecer para muitos), confere prestígio onde quer que surja. Para além da sua obra fílmica e de um método de storytelling único, Scorsese tem outras três características que não são despiciendas: é uma figura que nos habituámos a ver na paisagem cinematográfica, com obsessões e humores muito próprios; tem carisma e influência no meio; e tem-nos ajudado a pensar o passado, o presente e o futuro do cinema.

Considerando tudo isto, desperta curiosidade perceber qual o motivo que fez com que Scorsese viesse a terreiro com críticas tão acutilantes ao próprio meio do qual neste momento depende. Note-se que o autor de “Taxi Driver” assinou um contrato bastante avultado com a Netflix, no qual tem financiamento contínuo. Em contrapartida tem de “produzir conteúdo a metro” para a plataforma. É claro que sabemos (ou, pelo menos, acalentamos o wishful thinking) que um contrato com Scorsese deste género nos trará bastantes alegrias, como é o caso recente de “Pretend It’s a City”, um dos resultados desse contrato em continuidade com a Netflix. Também David Fincher assinou um contrato de 4 anos com a Netflix, do mesmo género. “O Irlandês” foi a estreia de Scorsese nestas andanças, enquanto que “Mank”, foi a de Fincher (depois de, em tempos mais remotos, ter sido produtor executivo e realizador dos primeiros episódios de “House of Cards”). Existe uma expressão caricata para isto em inglês: “strange bedfellows”.

Regressando às declarações de Scorsese, podemos vê-las de duas formas. A primeira pressupõe que o realizador mantém uma relação ambígua com o meio com o qual se envolveu, e que, portanto, dirige críticas construtivas ao mesmo. Quer isto dizer que tenta usar a sua opinião e influência para melhorar a forma como operam as plataformas de streaming e convidá-las a dar um salto qualitativo na forma como apresentam, selecionam e disponibilizam os seus conteúdos. Nesse sentido, é um manifesto legítimo para qualquer trabalhador associado a uma empresa.

A segunda forma de olhar para a opinião de Scorsese é através do prisma do eterno desalinhado de Hollywood, que tem dificuldade em chegar a termos com qualquer clube/partido/empresa que o aceite. Para um maverick essa posição é ontológica; é no confronto com essa definição que a pessoa constrói a sua identidade. Voltamos, assim, à velha máxima de Groucho Marx, que afirmou que nunca aceitaria fazer parte de um clube que o aceitasse como sócio. 

No meio de toda a polémica, a grande interrogação fica: o que é que Scorsese está a dizer às gerações mais novas de cineastas? E aos próprios espectadores? As afirmações do cineasta e os seus atos são mais ou menos congruentes, conforme se escolha olhar para ambos.

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Escuela Internacional de Cine y Televisión, julho de 2015, Cuba

A propósito disto relembro uma conversa entre mim e Francis Ford Coppola (colega e contemporâneo de Scorsese) no ido ano de 2015. Entre goles do seu delicioso vinho, discutíamos debaixo do sol de Cuba os futuros do cinema. Na altura, a implementação de plataformas de streaming e complementos televisivos em Portugal era incipiente e o mundo mudou muito desde então. Mas lembro-me do grande mestre me ter avançado com uma ideia que me deixou perplexo. Parafraseando-o de memória: neste momento, quem tem os grandes avanços técnicos e tecnológicos para a produção de cinema são as produtoras de conteúdos desportivos. É claro que na altura eu não estava inteiramente a par da forma como eram filmados os eventos desportivos nos EUA, uma vez que acompanho pouco os desportos e tenho pouco interesse por modalidades tipicamente americanas.

Contudo, tirando esses grandes detalhes (passo o oximoro), percebi que Coppola estava interessado essencialmente na inovação e no potencial das mais recentes tecnologias para as poder aplicar, ao seu jeito e forma, noutro contexto. Por outras palavras, de tornar cinematográfico aquilo que ainda não o era – mas que poderia vir a ser. Coppola sabe bem que o cinema nasceu de uma curiosidade científica e que é um processo tecnológico e um negócio evolutivo – algo que por vezes nos tendemos a esquecer – o que significa que existe um fluir perene que lhe é inerente. 

Creio que Scorsese se imbuiu do mesmo espírito e abraçou a inovação, não só por questões práticas (financiamento e capacidade de produção), como também por pressentir potencial nas inovações. A questão é que, tal como Coppola, Scorsese parece estar incomodado com aquilo que para ele não é cinematográfico na inovação que abraçou. Assim, urge expurgar o que inibe o brilhantismo do cinema (de acordo com o próprio) e reconfigurar essa inovação para a tornar mais próxima do seu potencial intrinsecamente cinematográfico.

Só o tempo dirá se a batalha do visionário de “Goodfellas” é inglória, caprichosa ou ajudará a definir o futuro do cinema, neste ponto de viragem em que nos encontramos. Independentemente disso, uma coisa é certa e digna de nota: Scorsese continua com a tempestividade que lhe é tão peculiar. 

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