Como forma de promoção do filme “A Herdade”, o realizador Tiago Guedes e o ator Albano Jerónimo têm andado um pouco por todo o país em sessões especiais para apresentar a sua mais recente obra. Uma dessas sessões especiais ocorreu dia 23 de setembro, no Theatro Circo, em Braga, e foi apresentada por Albano Jerónimo, com quem o Cinema Sétima Arte conseguiu uma entrevista antes da sessão. Agradecemos desde já a disponibilidade e simpatia de Albano Jerónimo, bem como o auxílio da Leopardo Filmes ao ter permitido que a entrevista se realizasse.
C7A: Em primeiro lugar, agradeço a possibilidade de estar disponível para dar esta entrevista. A primeira pergunta que faço é se um ator quando está a gravar um filme tem noção daquilo que irá sair das rodagens, de como será o produto final?
AJ: Não. Ou seja, obviamente que quando abraças um trabalho queres que aquilo seja o melhor trabalho do mundo, que seja o melhor resultado possível, mas o meu foco é sempre diário. Obrigatoriamente tenho de me focar no esforço, na atenção diária que implica uma cena ou outra, se um colega é o mesmo ou não, o que é que o realizador poderá querer, o que é que o diretor de fotografia poderá querer, onde é que é o décor, como é que é. Ou seja, há tanta coisa em que tenho de me focar, que esse resultado final vem na última parte da equação.
C7A: Provavelmente nem pensam nisso quando estão a gravar, apenas se preocupam em fazer o vosso trabalho como atores.
AJ: Exacto. Eu invisto muito em cada cena. Para mim, o meu filme começa no trabalho diário e é totalmente investido cena a cena.
C7A: Numa das entrevistas do Albano e do realizador Tiago Guedes sobre o filme não deixei de notar que, tanto o Tiago Guedes como o Paulo Branco [produtor] fizeram referência ao facto de que só fariam o filme com o Albano, até esperaram que estivesse disponível para o fazer. Acha que isto coloca pressão no ator, por ser aquela escolha única, aquele ator que a produção quer mesmo ter?
AJ: Agora que penso, sim, há uma pressão, mas na altura não a senti. Porque o que ficou à frente de toda essa possível pressão foi uma vontade imensa do Tiago querer trabalhar, o Paulo também e depois também a minha vontade enorme de querer abraçar um projecto desta envergadura e para mim, enquanto ator, fazer de protagonista num filme que me desse a possibilidade de gerir um trabalho durante a rodagem toda, que era um desafio que eu nunca tinha tido e queria de facto ter essa possibilidade. Então, a pressão ficou para trás, a vontade veio ao de cima, de parte a parte.
C7A: Segundo sei, ainda não tinha aparecido em nenhum filme do Tiago Guedes, mas já tinha trabalhado com ele noutros meios, no teatro, se não estou em erro.
AJ: Eu estive com muito orgulho na primeira encenação de teatro do Tiago Guedes, no Maria Matos, o “Pillowman”, do Martin McDonagh, mas nunca num filme dele.
C7A: Então esta insistência do Tiago já era com conhecimento de causa, digamos assim.
AJ: Sim, até porque já houve uma abordagem anterior a esta para uma série chamada “Os Boys”, acho eu. O Tiago desafiou-me nessa altura, mas eu estava a fazer outro projeto e não deu mesmo para fazer a série.
C7A: Tanto o Albano como o Tiago têm andado um pouco por todo o país, como por exemplo nesta sessão de hoje, que até já esgotou e deu origem a uma sessão extra amanhã [dia 24 de Setembro]. Acha que isto é importante para o público vir às salas, tendo aqui os protagonistas? Porque vivemos num país onde não há muito aquela tradição de ir ao cinema, principalmente se é um filme português. Acha que esta presença pode atrair as pessoas?
AJ: É fundamental. Eu acho que é fundamental para nós que fazemos o filme e para o público que vem. Acho que pode ser um bónus e acho que nos compete a nós assumirmos cada vez mais esta responsabilidade de fomentar esta fusão entre aquilo que é criado artisticamente e o público. Acho que potenciamos tudo, a vontade de um público e o nosso desejo de levar cada vez mais longe aquilo que fazemos. E o facto de nós nos desdobrarmos, de nos multiplicarmos em presenças várias ao longo de todo o país faz com que, pelo menos eu acredito mesmo, mesmo nisso, acredito que nos aproxima a todos e que eventualmente poderá esgotar mais uma sessão amanhã.
C7A: Algo que me chamou muito à atenção no filme foi a forma como foi tratada a história de Portugal, porque “A Herdade” acaba por ser um filme que retrata a história de Portugal, numa vertente mais recente. Eu fiquei a pensar até que ponto o público estrangeiro pode sentir uma conexão com esta história. Sentiu essa dificuldade por parte desse público?
AJ: Pelo contrário. Foi uma adesão total ao objeto em si, sem qualquer juízo de valor. É uma das grandes diferenças quando levas um filme lá fora, noutra língua, noutra realidade cultural, noutro ambiente. As pessoas limitam-se a absorver aquilo que estão a ver, exatamente porque não nos conhecem de parte nenhuma ou porque nem sequer conhecem muito bem a história de Portugal. Absorvem aquela história e mesmo a ideia de ficção é assumida de uma forma mais honesta. Não sentimos dificuldade nenhuma, mas isso potenciou nas conversas pós-filme algumas questões históricas como “Aquilo aconteceu mesmo assim?” ou “Como é que aconteceu na realidade?”
C7A: Se calhar também pôde fomentar um pouco a descoberta posterior da história de Portugal. Mas acha que o Tiago Guedes e os restantes argumentistas possam ter pensado em colocar alguma exposição no filme, algo que conseguisse explicar a um público que não estivesse familiarizado ou nem lhes passou pela cabeça?
AJ: Não passou pela cabeça. Acho que o centro deste filme é a família e o que o Tiago quis, parece-me a mim, foi exatamente criar uma série de acontecimentos que atravessassem esta família e que de certa forma a mudassem ou a precipitassem em situações novas. Isso aconteceu e eu creio que a revolução aqui vem no seguimento de acontecimentos vários. Atravessar um período histórico absolutamente fundamental no nosso país representa exatamente até que ponto é que isso muda uma dinâmica familiar, muda as pessoas, muda o indivíduo, se te adaptas ou não. Há uma pergunta que surge sempre após uma revolução,“Como recomeçar?”, e essa pergunta está aqui neste filme, há uns que se adaptam, mas há outros que não.
C7A: Uma das questões que o Tiago também falou em várias entrevistas é a de que o título “A Herdade” remete muito para a palavra “Herança”. Aqui, acaba por ter o João como personagem central, aquilo que herdou do pai naquela cena inicial e de que forma passou a sua personalidade para os filhos. De que forma acha que esta personalidade foi passando desde o pai de João até aos filhos? Ou os filhos de João acabam por demonstrar ter a sua própria personalidade?
AJ: Acho que o filme mostra um pouco isso, como é que se pôde gerir essa aprendizagem de pai para filho. Eu (a personagem no filme) tenho um filho que é precisamente um choque direto e outro que é um “meio filho”, digamos assim, com o qual existe uma relação mais orgânica. Como é que isso é digerido, como é que isso é passado? Das duas uma, ou temos a capacidade para nos adaptar e de olharmos para o outro como um indivíduo por si, uno, responsável e que tem uma vida independente da minha, ou não. E acho que este João Fernandes mistura muitas vezes esses conceitos, contamina tudo, é uma bola de coisas à maneira dele. Quem não perceber tem de se adaptar, é um pouco isso. É muito incoerente esta personagem, é uma das coisas que eu mais gosto.
C7A: E de certa forma deixa-nos muito para pensar também, porque muitas vezes quando há aqueles saltos temporais, há coisas que nós não sabemos bem como aconteceram. Ao interpretar a personagem tentou criar respostas para a personagem, ou seja, tentar criar uma história que o ajudasse a construir a personagem ou quis deixar as coisas ambíguas na mesma?
AJ: Deixei as coisas ambíguas, o que não quer dizer que não tivesse tomado opções interiores. Mas o meu objetivo tem que ver com o público, no sentido em que eu comunico uma determinada coisa que não tem que ver comigo diretamente, tem que ver com uma coisa que estou a trabalhar, que está acima de mim. E, nesse sentido, eu tenho de ser um agente da comunicação perfeito, tenho de ter a capacidade profissional de potenciar essa comunicação. Então tenho de ser o melhor bastardo, o melhor animal, o melhor selvagem, o maior cobarde, para poder exatamente ginasticar esta linguagem final, esta comunicação, porque o que me interessava aqui era de facto criar algo imperfeito, inacabado, torto, anguloso, à espera de ser completado por quem me vê e há de facto essa partitura do silêncio que aqui é totalmente propositada, para que o público possa existir de uma forma plena, nas perguntas, nas dúvidas, até em possíveis conclusões.
C7A: E para se tornar mais ativo, não ser tão passivo.
AJ: Precisamente. Este filme tem uma duração de 2 horas e 46 minutos, mas eu acho que é a certa porque dá exatamente ao público um outro tempo que nós não temos normalmente no nosso dia a dia. É mesmo um passaporte para um outro tempo e para terem uma participação ativa na construção de toda esta história, de todo este universo. Eu acho o filme bastante pertinente também por causa disso.
C7A: Acha que “A Herdade” vai quebrar o jejum de Portugal nos próximos Óscares? Já submetemos 35 filmes, mas nunca fomos nomeados, é um recorde negativo. Acha que vamos quebrar o jejum este ano?
AJ: Sem dúvida, acho que os festivais ajudam imenso a catalogar um filme. Vou dar um exemplo, que pode ser até bastante ridículo. Imagine um júri que tenha 30 filmes de todo o mundo para ver. Ele pode dizer que só vai ver aqueles que estiveram em festivais e, nesse caso, o nosso vai lá estar nessa possível escolha. O que eu quero dizer é que estes carimbos destes festivais colocam o filme logo numa montra para quem puder vir a analisar.
C7A: Se é que chegam mesmo a ver os filmes…
AJ: Precisamente. Agora se vamos quebrar o jejum, eu adoraria. Acho que todos nós queremos uma vez mais levar o nosso trabalho o mais longe possível. E, obviamente, ao levarmos o nosso trabalho, arrastamos todo o nosso país, a nossa cultura, a nossa linguagem.
C7A: E claro que já é uma honra estarem presentes em dois festivais.
AJ: É incrível. Veneza e Toronto são os maiores festivais do mundo, à parte de Cannes.
C7A: Portanto, aqui os Óscares acabariam por ser mais uma confirmação.
AJ: Sim, o próprio Toronto é uma espécie de antecâmara para os Óscares.
C7A: Quantos cigarros teve de fumar durante as gravações do filme? (risos)
AJ: (risos) Não sei, mas foram imensos. Posso dizer que houve um dia em que fumei 18 cigarrilhas e no final desse dia vomitei-me todo. E há um bónus, eu tinha deixado de fumar 2 meses antes de começar a rodar este filme, mal eu sabia que ia estar a fumar permanentemente. Foi horrível. (risos)
C7A: E não só para o Albano, como para quase todas as personagens. É um filme com muito fumo.
AJ: Sim, mas nós tínhamos de ser fiéis a certos ambientes e isso era uma característica. Eu próprio me lembro do meu pai a fumar a fazer a barba. Fumava-se em todo o lado, nas televisões, em entrevistas, os pivôs a fumarem…
C7A: Nas salas de cinema também…
AJ: Enfim. Então acho que isso era uma imagem ou um detalhe que de facto identificava um Portugal numa época e acho que isso tinha de lá estar.
C7A: Depois deste filme, o que é que o futuro reserva para o Albano e para o cinema português?
AJ: Este filme está a ter um percurso ímpar, com os festivais. O que isso pode trazer na prática, confesso que não sei. Se isso me poderá levar pessoalmente a conhecer agentes, produtores, realizadores, poderá ser uma hipótese, mais do que isso não sei. Se cá em Portugal poderei ser desafiado a fazer de protagonista noutros filmes futuramente, também não sei.
C7A: E dado que já teve alguns papéis no estrangeiro, pode ser que surja uma oportunidade para fazer personagens com cada vez mais relevância.
AJ: Eu gosto de novos desafios, como “A Herdade” foi um novo desafio. E lá fora encaro exatamente com o mesmo nível, é um novo desafio.
“A Herdade” estreou dia 19 de setembro nos cinemas nacionais em mais de 70 salas e é o representante de Portugal para os Óscares de 2020 na categoria de Melhor Filme Internacional.