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«Sítio Certo, História Errada» – O Cinema Não Morreu

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Nada parece tão prazeroso como o momento de uma recém-descoberta que nos provoca um profundo sentimento de encontro – como se, até então, estivéssemos a perder algo. Como não existimos para sempre, sentimos as perdas com forte dor; mas, por contraste, algo nos enche de vida assim que o acaso se manifesta, colocando diante de nós, como uma dádiva, um pedaço de estranheza. Foi com este mesmo sentimento que me encontrei com o meu primeiro filme do realizador sul coreano Hong Sang-soo. Aquilo que retiro de mais singular neste sentimento é que ele parece ter sido gerado por uma espécie de superfetação do filme, que, para além de gerar um outro filme dentro de si, consegue gerar em nós uma sensação de génese infinita, como se todas as possibilidades de ser se abrissem diante dos nossos olhos.

O filme divide-se em dois momentos: duas histórias que mantêm em comum os mesmos sítios e as mesmas personagens. Em ambas as histórias, o cineasta Ham Cheon-soo (Jae-yeong Jeong) apaixona-se por uma pintora (Min-hee Kim).

É na simplicidade da sua abordagem que se concentra o grande valor do filme. Hong não nos brinda apenas com um exercício cinematográfico cujo valor termina na sua evidente e desconcertante singeleza, é muito mais o que se esconde por trás desta delicada comédia. Absorvendo no seu estilo o transcendentalismo – algo que Paul Schrader apontou como fazendo parte de um estilo que Ozu, Bresson e Dreyer teriam em comum – que se tornou traço do que de melhor já se fez na história do cinema, o seu cinema entra no mundo quotidiano, na superfície das coisas, para fazer a sua celebração. Esta celebração da superfície torna-se visível na aparência quasi documental das imagens, onde o uso da tecnologia digital, do plano-sequência e do zoom contribuem para um esforço de desvelamento capaz de fazer cair todos os excedentes estilísticos que pudessem impedir uma manifestação mais natural das imagens – o que Paul Schrader chamou de screens. É para atingir esta simplicidade que procura desfazer-se das cortinas que possam anular a experiência dessa presença do que transcende a tela que Hong procura. Como confesso admirador do trabalho de Bresson, o realizador sul coreano procura tornar visível a vida interior das personagens, a tensão interna que as habita; porém, ao contrário do realizador francês, aproxima-se dessa realidade interna com um estilo menos austero e inquisidor. Hong consegue adoptar esse tom mais naturalista – que Bresson não aceitaria por se aproximar da interpretação teatral – sem que as palavras das personagens sejam absorvidas pelo psicologismo que possa estar envolvido, fazendo com que as personagens continuem a guardar – e a mostrar – aquilo que possuem de mais precioso, o seu mistério.

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Hong, com este filme – que separa em dois -, para além de nos oferecer uma visão do natural e da potência de vida que nasce do acaso, dá-nos a mais bela das lições, onde a moral nunca se desliga do cinema. Na primeira história, Hong coloca a personagem do cineasta a mentir para Yoon, na apreciação ligeira que faz da sua pintura, ou na omissão do seu casamento a Yoon no sentido de abreviar o encontro para conseguir uma conquista tão fácil quanto efémera. A falta de verdade moral começa a manifestar-se num campo extra-moral – estético ou existencial. Neste ponto, facilmente encontramos ressonâncias da filosofia de Nietzsche, ao pretender – tal como o filósofo alemão- revelar que a génese moral reside sempre na forma como lidamos com a vida no seu campo de imanência concreto, em como despimos o mundo das suas saudáveis e inocentes ilusões para nos tornarmos seres práticos, inteligentes, eficazes, verdadeiros. A mentira de Ham é estratégica. Ao ter em vista uma finalidade clara e fácil, renuncia à inocência dos que abrem em si um espaço que acolha o outro, deixando arder esse fogo que ele, inesperadamente, lhe possa ter ateado no coração. A ilusão deve preceder qualquer verdade de sentido prático, uma vez que há mais verdade na ilusão do que na eficácia lógica de qualquer acção maximamente calculada.

Na segunda história, intensifica-se esta transposição para o sentido extra-moral e o reflexo da verdade revela-se na própria forma de fazer cinema. O que esta nova história nos diz, de uma forma tão bela quanto subtil, é: sempre que procurares pela beleza das coisas, ser-te-á dada, com ela, a verdade. Hong vai dar uma nova tentativa a Ham para que ele possa buscar essa beleza, como se a nova atitude de Ham perante Yoon inspirasse o próprio realizador a procurar a beleza com que os vai abraçar. Um bom exemplo desta mudança formal, que acontece na segunda história, está na cena onde ambos se encontram no atelier de Yoon: a câmara reflecte a mesma displicência e ligeireza de Ham de uma forma bastante simples, através da mudança de lugar de um simples objecto: o prato onde Yoon vai buscar a tinta antes de dar uma pincelada no seu quadro. Antes mesmo de vermos esse prato, entramos de rompante no atelier, que de imediato nos mostra parte do quadro que Yoon está a pintar. Depois desse plano, a câmara foca-se no prato que se encontra do lado esquerdo da mesa. A presença da câmara neste lado da mesa faz com que o nosso sentimento da cena mude quase radicalmente: a ausência de uma iluminação que vivifique as tintas, o corte da mão de Yoon que segura o prato já são pormenores visíveis que, por si, já podem reflectir uma falta de cuidado na construção da cena; porém, a parte mais danosa não está nesses pormenores. A câmara do lado esquerdo da mesa significa que o gesto da pincelada de Yoon aparece isolado, isto é, vemos o quadro na sua totalidade, ao mesmo tempo que o olhar e a reacção de Ham nos é escondida. Quando Yoon se senta a contemplar o seu quadro, a imagem de Ham aparece-nos quase como um emplastro a olhar para Yoon – mas, Hong é tão genial que até isso ele resolveu com uma voz-off dos pensamentos de Ham. Esta posição de câmara revela tudo em excesso e o cinema pretende-se misterioso. Por isso, na segunda história, Hong passa a câmara para o lado direito da mesa – há quem compare isto a uma argúcia da visão, quando graças a uma subtileza do uso das leis da física Colombo conseguiu que o ovo se segurasse em pé sobre a mesa, ou então, podemos comparar à força e valentia da espada de Alexandre quando conseguiu desatar aquilo que se pensava desatável, o nó górdio. Hong, com esta mudança, capta a tinta verde do prato vivificada pela luz, a mão de Yoon tem mais presença no plano. O quadro esconde-se; Ham deixa de ser um emplastro e, num pequeno zoom, Hong enquadra Yoon para que possamos sentir a sua contemplação do seu próprio quadro. A câmara começa a procurar a mesma beleza que Ham e para além da câmara são os diálogos que começam a sofrer mudanças. As próprias palavras começam a ganhar um novo peso, ganham uma presença estética e concreta que antes não tinham. As palavras reorganizaram-se e, desta vez, não para se tornarem armadilha para a obtenção de uma finalidade, mas para cumprirem a sua adequação a uma alma que se abriu à verdade; elas já não pretendem engolir o encontro, mas antes entregarem-se a ele. Só assim se poderá gerar algo de belo, ao tornar-se uma promessa de felicidade – diria Stendhal.

Se antes mencionei as influências de Bresson ou Ozu, talvez a que mais se manifeste seja a de Éric Rohmer. Hong tem sido amiúde comparado ao realizador francês, que se tornou um dos grandes símbolos da Nouvelle Vague. E é impossível não pensarmos no cinema de Rohmer, principalmente nos filmes que fizeram parte dos seus “Contos Morais”. Nestes seis filmes de Rohmer, entre os encontros fortuitos das personagens, vem sempre colocar-se a barreira moral da fidelidade a alguém que ali não está. É da constante tensão entre estas barreiras que tanto as personagens de Rohmer como as de Hong vão criar beleza e liberdade, uma vez que caso as barreiras não existissem, a beleza não seria possível. A visibilidade de um puro fluir da positividade nunca daria a ver toda a tensão de pensamento que habita o interior destas personagens. Em tempos onde a pornografia – como excesso de visibilidade, de imediatismo e positividade – ganha espaço em todo o campo cultural e político, nunca foi tão necessário recuperar o erotismo essencial da arte. Hong, neste filme, recupera essa essência com a mesma delicadeza e magia que víamos nos grandes mestres do passado. O cinema não morreu.

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