“This song of the Man and his Wife is of no place and every place; you might hear it anywhere, at any time.”
Creio que todos os grandes filmes conseguem ser explicados numa frase curta e de fácil entendimento. Isto dá à obra um potencial de ser amplamente difundida e percebida, na sua essência, por qualquer espectador. Tal é o que acontece com “Sunrise”. A história que F. W. Murnau conta é a de um homem que se vê com uma escolha em mãos: a clássica luta entre o bem (representado pela sua Esposa) e o mal (que assume a forma da Mulher da Cidade, com quem tem um caso). As personagens não têm nome, o que é uma maneira de universalizar a história e criar um simbolismo que leva a que o público se relacione e identifique mais facilmente com o que acontece no ecrã.
Quando escrevo, evito ao máximo divulgar o enredo. Assim sendo, apenas conto que a escolha do Homem entre as duas Mulheres não é remetida para o final do filme, mas bem antes disso. No entanto, ao longo do artigo podem surgir algumas menções a certos momentos específicos da obra. O meu conselho: começar por ver o filme – é uma obra-prima, isso pode desde já ser dito – e depois continuar a leitura.
Ricky Gervais é célebre, entre muitas coisas, pelos seus monólogos e piadas nos Globos de Ouro. Há um momento em especial que me ficou gravado na memória (na primeira vez que o britânico apresentou a cerimónia). Consiste numa frase, que passo a citar: “O que fariam os argumentistas sem atores? Eles são os mais importantes. Não são as palavras que dizem, mas o quão bem parecem ao dizê-las” (tradução livre). Menciono esta frase de Gervais porque no cinema mudo não existia esta “escapatória”, pelo menos na totalidade. Um ator ou atriz podia ficar muito bem à frente do ecrã, mas a maneira de se mover no espaço, os gestos e as expressões faciais é que contam a história e criam uma ligação emocional profunda entre espectador e filme (como continua a ser até aos dias de hoje).
George O’Brien (o Homem) representa muito bem o papel de um homem em conflito interno, e depois de tomar a sua decisão consegue com que fiquemos do seu lado, simpatizamos com ele. Mas a figura de destaque é Janet Gaynor (a Esposa). A sua interpretação é brilhante, a emoção é palpável e cria com o espectador uma ligação à sua personagem. A opção de ter o cabelo da protagonista apanhado, o que reduz a sexualidade com que a Esposa é apresentada, foi uma escolha muito bem pensada a meu ver, pois condiz com a personagem e vai de encontro com aquilo que a história pede à personagem da Esposa.
Tecnicamente este filme é o auge do cinema mudo. “Sunrise” não tem diálogos, mas estreou com uma trilha sonora e até alguns efeitos (no entanto é considerado como sendo parte do cinema mudo – “The Jazz Singer” estreou no mesmo ano, 1927, marcando o início do cinema sonoro). Pensar nas sequências que são vistas em “Sunrise”, gravadas há quase 100 anos, e tendo em conta o tamanho das câmaras e a inexistência de instrumentos que permitem uma deslocação mais fácil delas (steadicam por exemplo), deixa qualquer um a questionar-se “como foram obtidas as imagens que se vêem no ecrã?”. A fluidez dos movimentos da câmara é fascinante, em certas sequências é como se levitasse por entre o espaço. Isto foi conseguido, em parte, porque Murnau teve um orçamento muito elevado para a concretização da obra, e vários sets foram construídos propositadamente para a gravação deste filme (por exemplo, a cidade custou 200.000 dólares na época, um valor exorbitante), o que facilitou a tarefa dos directores de fotografia Charles Rosher e Karl Struss.
O enredo, não sendo complexo ou cheio de reviravoltas, cumpre perfeitamente a sua função, e além disso consegue ter substância: existe um binómio campo-cidade, que é observável na cena após a perseguição ao porco (a música que a banda toca chama-se “Peasant Dance”, e o Homem, talvez reconhecendo-a, mostra-se relutante para dançar); a luta entre o bem e o mal (Esposa e Mulher da Cidade); e a crença que o amor é mais forte do que qualquer dificuldade que surja no nosso caminho.
Murnau não era fã de intertítulos. Apesar de estarem presentes, são cada vez menos visíveis ao longo da obra, até ser apenas a ação que “fala”. A famosa regra “show, don’t tell” (apesar de, nos dias de hoje, não significar ter de cortar os diálogos por inteiro) era a única maneira de fazer a história mover-se quando não havia som. Caso os intertítulos fossem demasiado explicativos (tal como aqueles blocos de diálogos longos e demasiado explicativos que se vêem frequentemente) o interesse do espectador iria baixar rapidamente até chegar ao aborrecimento. Não seria um participante ativo na obra, criando o seu próprio significado; ao ter a visão do autor exposta (em demasia), o espectador perde o interesse, e isso é válido até aos dias de hoje, e vai sê-lo enquanto se continue a fazer cinema.
“Sunrise” na 1ª edição dos Óscares, em 1929, arrecadou três prémios: melhor atriz (Janet Gaynor), melhor fotografia (Charles Rosher e Karl Struss) e um Óscar que apenas foi atribuído a este filme e nunca mais voltou a existir: Best Unique and Artistic Picture. F. W. Murnau alcançou com esta película aquela que, a meu ver, é a sua obra-prima. Um marco na história do cinema e um motivo (se é que é preciso) para os filmes mudos continuarem a ser vistos e revistos nos dias que correm, porque com eles aprendemos imenso, sobre cinema e sobre a vida.