Se aqui se pode desvendar a postura autoral de J. J. Abrams, na sua demanda de reatualizar o cinema de género através da glorificação das suas convenções, é porque se pode afirmar – pela constância estética da sua carreira – que ela é feita através de uma aproximação pós-moderna de junção e mescla dos diversos géneros que fizeram (a fazem) a glória popular dessa absoluta fábrica dos sonhos que é Hollywood, tais como a ficção científica, o filme de monstros e de terror.
Ao olhar e falar de Super 8, está-se a olhar para e a falar do mais conectável cinema narrativo – realizado e produzido para apelo massificado – mas também de um absoluto cinema de autor – feito pelo amor ao Cinema e com amor pelo cinema de género – em relação simbiótica com a riqueza histórica dos seus modos de fazer, quer na sua estruturação narrativa, quer no seu jogo de convenções paradigmáticas, quer nas suas técnicas do realizar e filmar. E, no seguimento, reconhecer e afirmar nele o posicionamento estético de J. J. Abrams como sendo o de um cineasta-autor, sabedor e colecionador de múltiplas referências de um cinema que é neste filme tomado como imagética de uso e citação-referenciação: o de um outro cineasta, um que também trabalhou a forma referencial como um modo de criação original a partir dos grandes filmes de poder memorial, e que é o de Steven Spielberg.
Há toda uma atmosfera, em Super 8, que faz rememorar e perceber uma citação das formas de filmar do cinema de Spielberg, mas não se fazendo a si mesmo como um cinema derivativo, mas sim como um cinema respeitosamente tributário e, mais do que isso, um cinema relacional, um que, para além da citação imediata, estabelece uma relação cultural com o cinema citado – com os seus settings, com as suas atmosferas, as suas imagens, mas sobretudo com o seu feel – e que dele se torna um reflexo e um espelho. Não imita, constrói sobre, faz recordar, faz sentir o mesmo estado de encanto que esses filmes instilaram no realizador deste Super 8, os filmes de um cinema-entretenimento que lhe são agora ainda tão queridos – como bem se verifica pelo ato referencial – como cineasta, quanto o eram e são, enquanto cinéfilo e estudioso dos seus modos de fabrico e significação. Mais ainda, parece claro que Abrams tem para este filme toda uma referência-filme: Encontros Imediatos do Terceiro Grau.
Super 8 é, claramente, um filme-tributo à obra seminal de Steven Spielberg, no género tomado, a ficção científica (ainda que indo para lá dela), no setting (o interior dos Estados Unidos), e sobretudo nas imagéticas e atmosfera(s), as quais funcionam, no filme de Abrams, como imagens-reflexo e ambientes-reflexo do filme de Spielberg. Em Super 8, há um plano muito geral de uma planície noturna, atravessada pela carrinha do Dr. Thomas Woodward (Glynn Turman), e que se pode reconhecer como sendo similar a um de Encontros Imediatos do Terceiro Grau, com a divisão entre a terra e o céu, a amplitude do espaço-imagem graduado pela luz noctívaga, mas não se formulando como uma imagem-cópia, mas vivendo antes como uma imagem- memória, (re)criada por um cineasta que cita um outro e que, com amor pelo cinema, a redesenha pela forma do seu cinema e pelo colocar do seu olhar- câmara: cinema-relação, cinema-memória, cinema-reflexo, um cinema pelo amor ao cinema (de género).
Mas Abrams é um outro cineasta, o seu Super 8 é mais negro, há nele medo tão forte quanto nele há encanto, não há só o maravilhoso da ficção científica benigna, há também a junção do terror (o filme de monstros) que assim o enforma como um filme de retrabalho dos géneros, atualizando (porque juntando e acrescendo) as lógicas dos paradigmas da ficção científica em cinema: ao look retro associa-se uma temática do presente – o mal que vem de fora, o outro ultra-desconhecido – agregando-a e absorvendo-a nas estruturas narrativo-dramáticas do género, enquanto desenvolvidas num – neste – filme específico.
A aproximação pós-moderna de Abrams, regressando ao feito, ao clássico, para o retrabalhar, fica ainda mais clara na sua assunção formal do filme dentro do filme, da construção fílmica que se vai arquitetando ao longo da supra- construção: a curta-metragem de zombies que vai sendo produzida durante a longa-metragem de ficção científica/monster movie que é Super 8. The Case é, por sinal, um filme rodado em película 8 mm (no formato Super 8), dentro de um filme maioritariamente rodado em película de 35 mm e com algumas imagens digitais capturadas a 4.5K ou geradas a computador, e estas última incrustadas sobre os suportes analógicos (as quais ainda acresce a película de 16 mm, no formato Super 16, utilizado para a filmagem dos planos que replicam o Super 8 mm, de modo a permitir a adição de imagens sintetizadas), o que ainda mais o categoriza – ao filme Super 8 – como um filme sobre filmes a serem feitos nos modos técnicos e tecnológicos do seu fabrico, sempre chamando a si mesmo a função de cinema-feitura e cinema-construção. Esse cinema-infra, dentro do cinema-supra afirma também a postura cinéfila de Abrams e, uma vez mais, o gosto pelo e o culto do género cinematográfico, nas suas regras e convenções, a retrabalhar enquanto um processo autoral.
Não é por acaso que o grupo de amigos adolescentes, constituído por Joe Lamb (Joel Courtney), Charles Kasnyk (Riley Griffiths), Cary McCarthy (Ryan Lee), Martin Read (Gabriel Basso) e Preston Scott (Zach Mills), tudo fazem – enquanto verdadeiro indie filmmakers em ação, mesmo antes do termo existir enquanto categoria artística e de produção cinematográfica – para acrescentar production value à sua pequena obra magna. E é exatamente aí que o diminuto filme em busca de valores de produção se cruza com o grande filme de visual effects de Hollywood: já após a adição da atriz Alice Dainard (Elle Fanning), a equipa, ao filmar uma cena melodramática – mais uma vez, os géneros dentro dos géneros – acaba por se ver envolvida na situação que espoleta a trama de ficção científica, o desastre de comboio que liberta o ser extraterrestre e que é filmado inadvertidamente pela câmara Super 8 do filme de zombies.
O desvendar das imagens latentes na película torna-se o foco de uma procura que efetiva o poder do cinema como um registo da verdade e da factualidade do acontecimento. Ficção torna-se prova científica e documental. Daí a glorificação do suporte filme/película enquanto meio de latência, que precisa de tempo para tornar visíveis as suas imagens, mas que depois se tornam reais e verdadeiras, porque registadas e palpáveis.
O mesmo realismo com que Abrams, a um outro nível, estabelece a base melodramática do filme: o jogo inter-relacional entre os amigos, as suas alegrias mútuas e as suas desavenças ocasionais, os eventos extraordinários que lhes servem como ritos de passagem, a descoberta do amor, a sua aparente impossibilidade e a sua vindicação como modo de redenção das feridas abertas, são-nos mostrados na forma da veracidade de quem se preocupa, de quem não deixa passar a maldade, de quem não deixa ficar ninguém para trás. No mais fantástico e incomum dos acontecimentos, o ponto focal é posto numa questão fundamental: como é que se pode ajudar o outro, mesmo tendo que enfrentar um supra-outro, tão extremo e aparentemente tão maléfico. Mas mesmo esse outro é alguém que é um espelho da desconfiança e do medo, é um ser que receia – tal como o monstro de Cloverfield parece também responder e atacar por medo aos que o atingem – os que o receiam a ele.
Esse é um dos outros pontos de toque entre Super 8 e Encontros Imediatos do Terceiro Grau: a necessidade e a clareza da existência de um algo em comum, de uma postura universal na ontologia dos entes viventes e pensantes. A existência dos vários pressupõe a forma do ser das diferenças, quanto mais estranho e extra-nosso mundo um ser parece, mais clara se torna a sua validade enquanto outro que é ainda mais um ente-biológico e ente-consciência que age segundo o seu relativo ponto de vista em relação a outros.
No fim, há sobretudo a compreensão na diferença – afinal o que é um corpo, o que é uma biologia? – enquanto espelhada no deixar ir, no reconhecimento de que o extra-corpo tem o direito de regressar a casa. As partes do todo que acabam por reconstruir a nave, afirmam essa necessidade do conjunto, que, por sua vez, se reflete no agrupar dos habitantes e soldados no olhar de encanto, à medida que o magnetismo puxa os materiais necessários à reconstrução do veículo.
Abrams tributa Spielberg, uma vez mais: cinema de luz e de objetos em atração, a mão de Joe que segura o pendente magnetizado com o retrato da sua mãe partida, um olhar sobre a sua face, e o deixar ir para poder ajudar, para libertar também a dor. Não um cinema sentimentalista, antes um cinema virado à sua emoção e filmado com sentimento, aquele de quem ama todos os filmes que viu, todos os géneros cinematográficos que amou enquanto criança cinéfila e que tem a oportunidade, enquanto cineasta adulto de os refazer – A Guerra das Estrelas sendo um outro exemplo – com todo o amor que lhes pode dar. Assim tem podido fazer e feito esse cineasta cinéfilo que é J. J. Abrams.
Porque também no cinema de género há muito cinema de autor.