“Swallow – Distúrbio”, a longa-metragem de estreia de Carlo Mirabella-Davis, é, à primeira vista, enganadoramente simples, devido ao seu aspecto perfeitamente controlado e limpo e pelo controlo irrepreensível do ambiente em que os personagens se movem.
Valendo-se tanto da fotografia como do som cristalino, “Swallow – Distúrbio” é tão preciso e cirúrgico que o espectador pode pensar tratar-se de mais um daqueles filmes esteticamente bonitos, mas de conteúdo vago.
Parece certo que a estética é o reflexo do grande esforço que Hunter, a sua protagonista, exerce para não sair da sua própria personagem, como se se tratasse de uma boneca russa.
A dona de casa perfeita é uma insuspeita rapariga normal que se casa com um homem rico, mas, claro, casa-se com a sua família ao mesmo tempo. A partir daí, uma série de temas vão surgindo aos poucos por sobre a camada de falsa calma que todos insistem em manter.
Carlo Mirabella-Davis é exímio em manter uma constante tensão ao longo de todo o filme e apenas ir revelando pormenores muito lentamente, por isso às vezes por entre um sorriso forçado quase que pode ouvir-se uma gota de suor orfã a embater contra o mármore a 5 quilómetros de distância.
Dentro de “Swallow – Distúrbio”, cabem sobretudo temas que dizem muito respeito às mulheres e ao seu papel na sociedade, por muito “esgotado” que isso possa parecer – apenas porque é necessário continuar a relembrar vezes sem conta que as mudanças não se encontram implementadas.
Hunter é uma quase self made woman, não porque é bem sucedida, mas porque cai no filme sem qualquer passado, como se se tratasse de apenas mais um objecto da luxuosa casa que partilha com o marido.
Constantemente, informa os sogros e o marido de que está imensamente grata pela oportunidade que lhe deram, como se falasse de um negócio ou um trabalho e não de um casamento.
Paulatinamente, Hunter vai desenvolver um distúrbio designado por Pica que é, ao mesmo tempo, o seu único conforto e vitória: gosta de ingerir pequenos objectos e recuperá-los mais tarde como troféus.
Por debaixo da sua aparência simpática e agradável, afinal existem traumas e será por causa desses traumas que Hunter se transformará verdadeiramente no nome que incorpora, deixando de ser a presa para passar a ser a caçadora.
Um dos poucos aspectos menos bem construídos de “Swallow – Distúrbio” talvez resida precisamente no modo como Carlo Mirabella-Davis liberta Hunter, transformando o filme num road movie/drama familiar, quando até então a contenção no diálogo e na estética faziam prever um filme de suspense bem conseguido.
Ao mesmo tempo, é em toda essa transição e nas subtilezas que o seu papel requerem, que Haley Bennett mostra a sua enorme versatilidade e talento, encarnando uma mulher que é tudo menos simples.
“Swallow – Distúrbio” é uma belíssima homenagem à avó do realizador e congrega não só parte da sua história pessoal de abuso às mãos do marido, mas também um olhar acutilante sobre a forma como as mulheres em geral são sujetas a actos que não correspondem necessariamente à sua vontade, mas sim à das famílias e dos cônjuges.
Esta violência é perfeitamente retratada na experiência de Hunter em vários momentos do filme, desde a altura em que o pai de Richie, marido de Hunter, a ignora quando conta uma história simples à mesa ou até no modo como a família de Richie faz a gestão da vida diária de ambos.
O modo como Haley Bennett vai desmontando a sua Hunter é de tal forma impressionante que quando o espectador a vê a comer as folhas do seu livro de autoajuda, não pode negar-se um sorriso amargo e, provavelmente, rever-se nela ou na história de uma mulher próxima.
“Swallow – Distúrbio” divide-se em duas partes estéticas e narrativas para propositadamente promover uma divisão entre o antes e o depois, algo que se torna bastante mais óbvio pelo modo como, por exemplo, o realizador opta por mostrar a vida diária de Hunter inicialmente como uma perfeita dona de casa dos anos 50.
Quando aquele cenário se começa a desmoronar, o filme começa a focar-se no presente e a fotografia transforma-se quase numa estética de telefilme, especialmente importante nas cenas em que Hunter dá asas ao seu distúrbio e toma uma refeição assaz invulgar num motel.
“Swallow – Distúrbio” é uma feliz obra de estreia de um realizador que não tem receio de chocar o seu público, especialmente porque o faz contando com a realidade, mesmo que se trate de ficção.
Hunter passará tanto tempo a interiorizar tudo aquilo que lhe parecia normal na sua infância e na sua vivência com a família, que não deixa de ser um sintoma o distúrbio que desenvolve.
O único acto que lhe confere algum conforto e preenchimento é o de se preencher com pequenos nadas, futilidades esquecidas num fundo de gaveta que significam muito mais do que todos os confortos físicos que a dinheiro lhe traz.
Engolindo objectos, Hunter engole o seu passado e o presente que se cola ao passado, num mimetismo que só pode ter fim a partir do confronto com a realidade, mas não digere nada do que consome e acaba envenenada.
Uma brilhante história de pequenas vitórias, pequenos gestos, da admissão da derrota, da verdade, o quebrar com as convenções daquilo que a sociedade ainda espera das mulheres.
Em pano de fundo, o enorme poder devorador do mundo físico, revelado tanto na imensidão das posses da família de Richie, como na irresistível compulsão de Hunter, cujo insaciável buraco negro emocional não a deixa ver para lá da autodestruição física.
Estas linhas talvez não façam toda a justiça que “Swallow – Distúrbio”, mas servem para relembrar que o filme estreia finalmente nas salas de cinema portuguesas, interrompido que tinha sido esse processo devido à pandemia.
É uma viagem fascinante aos meandros da mente humana, às suas motivações, aos auto abusos e aos abusos a outros, aos desejos sentidos e os admitidos e, sobretudo, uma história agridoce, trágica e triunfante, digna do inadmitido caos que habita os seres humanos.
