«The Card Counter – O Jogador»: a aposta no acto da criação

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The Card Counter (2021), Paul Schrader

O teórico do cinema Paul Schrader é demasiadamente reflexivo na sua construção cinematográfica para se desembaraçar da dimensão ética dos seus filmes (e para isso basta pensar no crescente moralmente desestabilizador de Travis Bickle em Taxi Driver (1976), ou do menos-amado Reverendo Ernst Toller em First Reformed (2017)). The Card Counter (2021) não é, portanto, excepção, antes confirmação, e o filme alterna, essencialmente, entre dois planos: o ambiente dos casinos, dos jogadores de póquer e dos torneios de jogos de cartas; e o plano das memórias de William Tell (Oscar Isaac) enquanto ex-militar que aplicava técnicas de interrogatório a prisioneiros de guerra.

O vício, tal como a guerra, são duas formas degradantes de alienação da natureza humana, pois, no fundo, nada há de mais solitariamente maligno do que entregar a sorte da sua alma ao acaso do jogo ou o das armas, em qualquer uma das apostas, parece não haver meio de salvação.

Por um lado, todo o cenário de casinos é escuro, os participantes dos torneios de cartas apetrecham-se em meios de dissimulação e o objectivo máximo é não se transparecer quem é ou o que se sente, de modo a ganhar. Para o moralmente condenado William Tell, contar cartas consistiu na estratégia de sobrevivência ao tempo de prisão pela condenação de um trabalho sujo que a América mantém em segredo tal como um trunfo de póquer. O chauvinismo liberalista americano ensina, desde cedo, a ética do “cada um é responsável pelas suas acções”, excepto os detentores do poder, que, segundo a lógica de os meios justificarem os fins, não olham a regras (ditos direitos) para obter a Verdade.

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Oscar Isaac stars as William Tell in THE CARD COUNTER, a Focus Features release.
Credit: Courtesy of Focus Features

Por outro lado, as memórias em flashback do contexto de interrogatório de guerra trazem à mistura cenas documentais para que não esqueçamos da real veracidade e autenticidade do mal que é praticado em nome da manutenção do poder. Contrastante com a movimentação inquieta da atrocidade humana que acontece nos corredores de Guantánamo, o plano fechado da expressão de William Tell, que não encontra justificação para tais acções humanas, revela-nos que Razão e Entendimento não bastam para compreender a existência do Mal.

Face à impossibilidade de fundamentar eticamente os actos cometidos, o ex-militar refugia-se na sabedoria estoica em busca da robustez da serenidade que lhe devolva a possibilidade do relacionamento com os outros. Entregar-se à irracionalidade do acaso das apostas faz parte da nova conduta moral. Impotente perante a assombração de um passado moralmente condenável, e consciente de que a Razão não é suficiente para compreender o lugar do Mal, a aposta de Tell é uma “Aposta de Pascal”, a saber, até num coração que esteja na escuridão, há razões desconhecidas para se (re)começar o jogo da vida. As razões desconhecidas pela própria Razão, visto que Tell não tem motivos para crença ou esperança no humano, impelem-no a salvar, pelo menos, uma vida para além da sua: a vida de quem vive, quiçá verdadeiramente estoicamente, “um dia de cada vez”. Tal como o garoto de Chaplin (que neste ano comemora o centésimo aniversário da sua estreia, sendo por isso uma especial referência), este The Kid, Cirk (Tye Sheridan), ainda vai a tempo de encontrar salvação para a sua alma.

A salvação é clara, seja sob forma de amor materno ou de relação amorosa, somente o coração é capaz de razões desconhecidas que ultrapassam a sede do poder de dar à luz Verdades absolutas e moralistas. Longe da opacidade ética dos serviços secretos e do risco das apostas de cartas, somente na luz dos néones das cidades iluminadas (re)encontramos os gestos-parteiros de um amor-regenerador.

Schrader está ciente daquilo que divide actualmente a América, e de que os jogadores-trumpistas, que vestem as cores do país dos pés à cabeça, são os mesmos que defendem cegamente um sistema que desconhecem estar a tresandar mal por dentro. Resta-nos apostar numa nova criação do mundo, e as mãos da cena final falam bem alto neste filme (ou não fosse Schrader admirador do lugar das mãos em Robert Bresson). Somente um acto de criação de adão é capaz de curar feridas e para isso, haja mercy of man (a banda sonora composta por Robert Levon Been para o filme).

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