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“The Worst Person in the World” e a soltura do lince

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The Worst Person in the World (Joachim Trier, 2021)

A não-binariedade e inevitabilidade da incerteza
Quando abrimos espaço para o cinema ditar as regras e costumes da atualidade é imprescindível lembrar que, antes disso, também existe uma esfera que nos é particular. Existe a possibilidade de enquadrar personagens fictícias e meramente existentes num espaço vazio e incluí-las no compasso histórico que for desejado. E aí, utilizar signos familiares ao espetador ou modificá-los de acordo com o propósito e vontade do criador. Não existe uma fórmula que leve a que um filme seja mais ou menos relacionável pela parte do público, no entanto, a proximidade ao seu mundo poderá facilitar a passagem de costumes ou reflexão histórico-social. E, num caso mais extremo, a mudanças de ações. Mesmo que nada disto seja, sem falta, o papel a que deve o cinema se propor a fazer.
O que encontramos no novo filme do norueguês Joachim Trier, The Worst Person In The World (Verdens Verste Menneske), para além do retrato de quatro anos de vida de Julie (Renate Reinsve), é também um enquadramento desse período à escala atual. Um dos problemas que se impõe de imediato é a incerteza que Julie sente relativamente à sua carreira profissional. Começa por escolher medicina, passa por psicologia, até que, ao tomar mais atenção ao seu feed no telemóvel, percebe que afinal fotografia é a escolha mais acertada. Trier não só transpassa para ecrã a utilização cotidiana de dispositivos tecnológicos para a realidade de Julie, como também percebemos rapidamente que este é um fator influenciador para as suas ações ou distrações de possíveis incómodos.
Sabemos que o que Julie virá a despertar do seu emocional, estará a despertar no presente, possivelmente o mesmo presente que o do espetador. E isso auxilia na ideia de que o ambiente que está a ser criado não só nega o vazio temporal como, esse espaço é incluído num semelhante ao de muitos de nós. Fazemos parte da realidade de Julie. Os quatro anos são separados pelo realizador em Prólogo, 12 capítulos e um Epílogo. Durante o processo de descoberta, Julie navega por vários relacionamentos de casualidade, até que conhece um cartoonista, Aksel (Anders Danielsen Lie). O romance do casal é apresentado como que um recapitular rápido de acontecimentos, o que, de certa forma se assemelha ao estado de espírito que Julie se encontra, piorado, por uma parte, pela influência de dispositivos tecnológicos.
Isolando Julie, conseguimos traçar-lhe um perfil consoante as questões por si impostas. Referente ao tema laboral, percebemos que se trata de uma problemática social, talvez de classe. Não nos é dado contexto económico ou psicológico de Julie além do que é expresso nas primeiras cenas. No entanto percebemos que as suas ações são tomadas de animo leve, devido a uma liberdade que lhe é dada. Um privilégio económico. Julie parece ter a indecisão e despreocupação de um adolescente de 18 anos que está prestes a iniciar a vida académica. No entanto, a personagem representada por Renate, tem perto de 30 anos. A indecisão não parece absurda. Até é inevitável. A despreocupação pode ser perigosa. Mas será isto fator de julgamento? Possivelmente. E aí, talvez seja necessário perceber o que poderá levar a esse sentimento. Poderá o título negativo proporcionar a especulação de que estaremos de face com uma figura inoportuna? O facto de ser mulher poderá ser um fator relevante? A verdade é que apesar de em muitas críticas e apresentações do filme ser dado como destaque a particularidade laboral, esta não parece ter grandes aparições ou interferências diretas no seguimento dos capítulos. Diria que se trata de uma consequência e não um motivo.
Julie, alvo de uma inquietação geracional, acaba por sofrer com condições que – e é aqui que entra a questão fundamental da longa-metragem – talvez um homem ou uma mulher solteira não passariam da mesma forma. O facto de poder prolongar essa indecisão molda a mulher em que ela se torna. Este é o ponto essencial na criação da esfera The Worst Person In The World. O incidente dramático é desencadeado pela indecisão com a liberdade, consequentemente, como isso acaba por interferir nos relacionamentos amorosos e confrontos de género, de cariz inconsciente ou socialmente impostos.

 

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The Worst Person in the World (Joachim Trier, 2021)

 

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A masculinidade da perturbação
No mais recente filme do austríaco Sebatian Meise, Grande Liberdade (Große Freiheit), Hans (Franz Rogowski), um prisioneiro homossexual pós-segunda guerra mundial, mostra-nos que a liberdade pode ser uma realidade individual. O prisioneiro quando vê que já não há motivos para o seu isolamento e é libertado uma última vez decide causar caos na rua de forma a ser preso novamente e voltar para os braços da liberdade que criou dentro da cela. Julie, numa realidade mais privilegiada, parece, igualmente, estabelecer os requerimentos da sua liberdade. Uma das bandeiras que decide erguer, após as diversas mudanças de curso, é o direito a não querer ter filhos. Este fator é o que torna, possivelmente, a relação que tem com o seu namorado de quarenta anos, Aksel, efémera.
O que acaba por perturbar esta relação é a liberdade que Julie escolhe para si. Do seu lado tem um companheiro que a compreende tanto ao nível criativo como de género e ambos referem que não encontrarão ninguém com quem consigam comunicar tão bem como eles comunicam. O problema é que Julie é a última, e já tarde, a perceber isso. Decide então deixar Aksel, enquanto este, em tom quase submisso, lhe serve o café matinal. Porém, este término não é realizado de forma convencional. O realizador, Joachim Trier, adiciona o seu desejo masculino mais dominante. Entre o momento que Aksel faz o café e o entrega a Julie, a mesma consegue, – e aqui temos um dos primeiros momentos surrealistas do filme, – parar o tempo e ir ao encontro apaixonado com Eivind (Herbert Nordrum), com quem já teria tentado se envolver intimamente.
Julie não tem receio de passar limites em prol da sua liberdade. Numa sociedade em que vemos os números da mulher como vítima de traição muito maiores que o inverso, Julie marca a sua diferença. Criou-se o hábito de associar um ato perturbador ou maldoso a dominância e consequentemente à masculinidade. O que afasta a mulher da esfera humana, resumindo-se sempre ao Outro, que tantas vezes Beauvoir referiu. E a maldade, mesmo que fictícia ou sem querer, vem do mesmo sítio que a maldade do homem. De descontrolo de liberdade. Que outrora foi propriedade do homem. Julie, todavia, não se afeta pelo término ou traição provocada. Só se apercebe que está a ser tomada por forças anteriormente aceites pelo homem quando se encontra com Eivind, mais tarde.
Numa noite em que o recente casal se encontra aborrecido com uns amigos, decidem tomar cogumelos mágicos. A cena começa por lembrar o ambiente mais horrorizado de Midsommar, de Ari Aster, com o pormenor de este momento ser revelador para a consciência de Julie. Num círculo diversos antigos namorados a cercam como preparação para um confronto final. Julie vs o seu pai. A ideia freudiana não é uma surpresa. Para além da falta de manuseio com a sua própria liberdade, também a relação com o seu pai parece um entrave para o sucesso romântico. Além deste cenário, Julie alucina por momentos que o seu corpo envelheceu e está a ser desejado e agarrado pelos presentes. E, sem faltar, por fim, um bebé no seu colo. A alucinação de Julie termina com a consciencialização que a personagem do cartoon do seu ex-namorado, Aksel, faz parte da figura narcisista dentro de si. O lince, ao se sentir atacado pelo bebé arranca-o dos braços indecisos de Julie e devora-o em tom de gozo. O que enfatiza a agressividade caracteristicamente masculina de Julie.

 

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The Worst Person in the World (Joachim Trier, 2021)

 

A segregação da igualdade
Semelhante a The Lobster de Yorgos Lanthimos, a história de Julie é relatada por uma voz feminina que a acompanha até nos momentos mais frágeis. Quando termina com Aksel, a própria voz da narradora decide dominar a situação, levando-nos a crer que realmente Julie é uma mera espetadora na sua própria vida, como mais tarde refere.
O pormenor brilhante de The Worst Person In The World é ser realizado por um homem e não se ter tomado, por facilitismo, o caminho do olho masculino heteronormativo. A personagem é feminina, a voz é feminina, o olhar é feminino. Mas a mensagem principal do filme talvez só consiga ser extraída com ajuda da presença masculina. Em particular, a presença de Aksel e o seu lince sarcástico. Este personagem de cartoon pode ter um simbolismo dual. Como anteriormente explorado, pode ser uma peça no narcisismo de Julie, que a auxilia a exprimir as suas convicções e confrontos a padrões sociais, como também um simbolismo da segregação do feminismo. Por muito que Aksel goste do artigo que Julie escreveu e lhe mostra, intitulado de Oral Sex in the Age of #MeToo, ele nunca entenderá na totalidade a relação que a mulher tem com a sexualidade. Porque não é uma mulher.
Numa entrevista, Aksel é acusado de não ser feminista e somente contribuir para uma sociedade sexista, pois o seu personagem lince o é. A sátira é ignorada e o autor é resumido à sua arte. O que são dois erros perigosos. Fora do ecrã, mais concretamente, no New York Film Festival (NYFF59), Joachim Trier é alertado para o facto de ser homem e escrever pela perspetiva feminina e o que porquê dessa decisão. Ambos os casos fazem segregações na igualdade de género. O essencial não se encontra em igualar Julie a Aksel ou Eivind: não só por não serem Julie como também não são mulheres, simples. A realidade de uma mulher deve estar ao olho de qualquer pessoa e respeitada pelo Todo. Portanto, antes de este filme simbolizar a vida de muitas pessoas, inclusive mulheres, também encara o papel que o homem tem dentro de um mundo que reconhece, respeita, mas a que, naturalmente, não faz parte. No fundo “o lince é um gato selvagem num mundo de gatos domésticos.” E o menos relevante desta frase é, precisamente, o género do gato.