Durante sua infância, Tim Burton sempre ansiou por se distanciar da pesada, fútil e reativa realidade que nos cerca, encontrando refúgio nas páginas densas dos livros do soturno autor, poeta, editor e crítico literário norte-americano, Edgar Allan Poe (1809 – 1849), entre muitas coisas, egrégio por sua notável criação de contos de horror e por ser considerado o “pai” do gênero ficção policial.
Logo, a influência poeiana agiu como um elemento primordial na configuração do tom estético, narrativo e técnico que permeia a filmografia de Burton.
Igualmente, Burton também se inspirou na interpretação subjetiva do universo, nas interações entre sombras e contrastes, assim como nos temas perturbadores do Expressionismo Alemão. Para aqueles que não estão familiarizados, o Expressionismo Alemão dos anos 20 procurava expor as aflições da condição humana por meio de imagens distorcidas e desvinculadas da realidade, evocando sensações de pesadelo. Além disso, o movimento foi essencial para fundamentar dois importantes géneros cinematográficos contemporâneos: o terror e o noir.
Nesse cenário, através da abordagem narrativa reminiscente de Edgar Allan Poe e da estética característica do expressionismo, Burton foi capaz de transformar suas próprias peculiaridades em formas artísticas intensas e perenes. Tanto que, não é surpreendente, portanto, que sua estética cinematográfica revele uma autenticidade única, uma realização alcançada somente por cineastas verdadeiramente excepcionais.
Contudo, não foram apenas Poe e o Expressionismo Alemão que moldaram o estilo burtoniano. O realizador norte-americano nutria uma paixão pelos filmes de terror de baixo orçamento.
Mas, ainda, ele descobria uma rota de fuga para um reino de fantasia por meio de obras como “A Mosca” (1958), de Kurt Neumann, “A Casa Assombrada” (1959), de William Castle, “O Corvo” (1963), de Roger Corman, entre outras, estreladas pelo charmoso Vincent Price (1911 – 1993), cuja influência se estenderia por uma considerável porção de seus personagens masculinos.
Por consequência, depois de completar o ensino secundário, ele se matriculou no Instituto de Artes da Califórnia. Durante seu segundo ano lá, surgiu a oportunidade de participar do programa voltado para novos animadores da Disney. Nesse quadro, em um intervalo de três anos, ele recebeu um convite para ingressar como aprendiz de animação no projeto do filme “Papuça e Dentuça” (1981), clássico de Ted Berman, Richard Rich e Art Stevens.
Entretanto, como diz a expressão popular, nem tudo na vida são flores. Acontece que, Burton estava insatisfeito em relação ao seu papel como animador, ao passo que a Disney reconhecia que seu talento não estava sendo plenamente aproveitado.
Diante desse cenário, ele tomou para si a tarefa de conceber os personagens dos filmes. Porém, lamentavelmente, essa transição não encontrou uma recepção favorável, impulsionando-o a dar início à criação de seus próprios projetos.
Esses empreendimentos incluíam a elaboração de poesias e a produção de obras de arte visual. Além disso, ao longo desses anos iniciais, também se aventurou no meio televisivo através de “João e Maria”, um especial feito para a Disney e “O teatro dos contos de fadas: Aladim e a lâmpada maravilhosa”, clássica série produzida e apresentada pela atriz Shelley Duvall, e realizou a criação de múltiplos curtas-metragens.
Um exemplo notável é “Frankenweenie” (1984), que, quase três décadas depois, seria transformado em um longa-metragem. Essas primeiras incursões no cinema chamaram a atenção do lendário Stephen King, que o indicou a Bonni Lee, um executivo da Warner Bros.
Seu primeiro encontro com a Warner Bros. resultou em “As Grandes Aventuras de Pee-wee”, lançado em 1985. Este filme marcou a primeira adaptação cinematográfica do programa “The Pee-wee Herman Show”, estrelado por Paul Reubens. A colaboração entre Reubens e Brurton provou ser um grande sucesso. Tanto é verdade que, em seguida, em 1988, o adorado personagem retornou às telonas em “Pee-wee – Meu Filme Circense”, realizado por Randal Kleiser. Anos mais tarde, precisamente em 2016, um outro longa-metragem “Pee-wee’s Big Holiday” foi produzido, tendo John Lee como realizador.
Três anos depois, Burton se deparou com “Beetlejuice – Os Fantasmas Divertem-Se” e imediatamente reconheceu que o projeto estava perfeitamente alinhado com sua visão criativa. No filme, Michael Keaton assume o papel de Beetlejuice, o fantasma brincalhão especializado em ‘bio-exorcismo’, isto é, na expulsão de seres humanos por meio de assombrações que seriam capazes de deixar qualquer um arrepiado. Quando a casa onde Adam e Barbara (Alec Baldwin e Geena Davis) moram é adquirida por uma família de Nova York, eles buscam a ajuda de Beetlejuice. Entretanto, os novos habitantes estão longe de ser considerados “normais”.
Embora tenha sido promovido como uma comédia hilária, o filme revela-se, na realidade, uma joia do humor negro, habilmente explorando o potencial de astros emergentes daquela época. Essa abordagem única atraiu um público ávido por algo fresco e pouco convencional. O triunfo desses empreendimentos pavimentou o caminho para sua realização de “Batman”, lançado em 1989.
O “Batman” de Tim Burton marcou o início da série de longas-metragens do patrulheiro de Gotham pela Warner Bros. Este sucesso do final dos anos 80 e início dos anos 90 apresentou o indicado ao Óscar Michael Keaton no papel do multibilionário Bruce Wayne/Batman, além do vencedor do Oscar Jack Nicholson como o primeiro Coringa icónico, Kim Basinger, Robert Wuhl, Pat Hingle, Billy Dee Williams, Michael Gough e Jack Palance. A trama gira em torno do enfrentamento entre Batman e o surgimento do brilhante criminoso apelidado de “O Coringa”.
“Batman” obteve tanto êxito crítico quanto financeiro, acumulando uma arrecadação global de mais de US$ 400 milhões. A produção foi reconhecida com múltiplas nomeações ao Saturn Award e também conquistou uma indicação ao Globo de Ouro, além de ser agraciado com um Óscar de Melhor Direção de Arte para o diretor de arte Anton Furst e para o decorador Peter Young.
Além disso, serviu de inspiração para a série animada “Batman: The Animated Series” e balizou o estabelecimento do Universo de Filmes Animados da DC, ao mesmo tempo em que influenciou significativamente Hollywood no âmbito das estratégias mercadológicas modernas e nas técnicas de desenvolvimento característicos do género de filmes de super-heróis, hoje amplamente esfolado pela Disney via Marvel e pela própria Warner Bros. via DC.
Tamanha é a marca deixada pelo filme que, no início deste ano, a Valencia Theater Seating conduziu uma ampla pesquisa, examinando 150 mil postagens no Twitter, a fim de determinar a preferência norte-americana quanto ao intérprete favorito do Batman. Os resultados, de fato, surpreenderam: Michael Keaton permanece como o queridinho de grande parte do país.
Por sua marcante atuação como o icónico personagem em “Batman” (1989) e “Batman: Regressa” (1992), ambos realizados por Tim Burton, Keaton capturou os corações dos fãs por mais de três décadas. Mesmo com outros atores tendo assumido o manto do Cavaleiro das Trevas desde então, como Christian Bale, Ben Affleck e Robert Pattinson, Keaton ainda lidera a preferência em 23 estados dos 50 estados.
Durante os anos 90, um dos marcos mais inesquecíveis e indispensáveis para todos os apreciadores da sétima arte surgiu na trajetória do californiano. Uma notável fusão de comédia dramática, romance e fantasia, “Eduardo Mãos de Tesoura” (1990).
Brilhantemente encabeçada por Johnny Depp no papel de um ser artificial chamado Eduardo, cujas mãos foram substituídas por tesouras, o filme conquistou corações. A trama narra a acolhida desse jovem pela família de um subúrbio, bem como seu enamoramento pela filha adolescente, Kim (Winona Ryder). O elenco estelar também incluiu Dianne Wiest, Anthony Michael Hall, Kathy Baker, Vincent Price e Alan Arkin.
Falando sinceramente, indiscutivelmente a obra-prima cinematográfica definitiva de Tim Burton. Cada elemento se conjuga para obstruir a intensa paixão compartilhada pelas personagens interpretadas por Johnny Depp e Winona Ryder, até culminar no momento crucial em que Kim se vê compelida a fazer um derradeiro sacrifício em nome de Edward, personificando o ápice do amor. Um trabalho magistral que permanece gravado na memória coletiva.
O filme marca a quarta colaboração entre Burton e seu amigo compositor Danny Elfman, também marcando o último papel significativo de Vincent Price, seu ídolo de infância, no grande ecrã.
O excêntrico conto de Eduardo encontrou uma recepção elogiosa por parte dos críticos e se traduziu em um triunfo financeiro, superando em mais de quatro vezes seu orçamento inicial de US$ 20 milhões. A produção conquistou inúmeras nomeações nos principais prémios da temporada 1990/91. Além disso, foi agraciada com o Hugo Award de Melhor Apresentação Dramática. Tanto Burton quanto Elfman expressaram considerar o filme como o ápice de suas colaborações criativas.
A glória dos anos 90 também se destaca através de obras como “Ed Wood” (1994), “Marte Ataca!” (1996) e “A Lenda do Cavaleiro sem Cabeça” (1999), período em que Burton explorou uma variedade de géneros, da ficção científica à comédia. Esse exercício é notável.
Por exemplo, em “Marte Ataca!”, ele apresenta um humor mordaz enquanto expõe de maneira satírica a política dos EUA, com um presidente notavelmente covarde [Jack Nicholson]. Em outras ocasiões, Burton habilmente mesclou comédia e elementos sobrenaturais, como visto em “Beetlejuice – Os Fantasmas Divertem-Se” (1988).
Isso evidencia o poder dele em criar obras com a estética dos filmes B, ao mesmo tempo em que entrega um humor de alta qualidade, resultando em entretenimento altamente eficaz.
Na virada para os anos 2000, surgiram produções que se tornaram emblemáticas para a geração Z. No início do novo século, Burton dirigiu sua atenção para “Planeta dos Macacos” (2001), uma readaptação de “O Homem Que Veio do Futuro”, originalmente realizado por Franklin J. Schaffner, ambos baseados na obra de Pierre Boulle. No entanto, apesar de contar com um elenco estelar incluindo Mark Wahlberg, Tim Roth, Helena Bonham Carter, Michael Clarke Duncan, Paul Giamatti e Estella Warren, o filme recebeu duras críticas e não obteve êxito nas bilheterias.
Por exemplo, em uma crítica publicada no The Guardian, no dia 17 de agosto de 2001, o experiente Peter Bradshaw foi categórico em afirma que “sua re-imaginação é um festival de bobagens estúpido, estridente, balbuciante, descascado de banana e bebendo PG Tips. E, de acordo com a premissa antidarwiniana, é uma regressão hilariante do original, uma ordem inferior de ser”.
Em 2003, o diretor retornou às suas raízes e alcançou sucesso com “O Grande Peixe”, que se tornou o meu filme favorito. Este trabalho estrelado por Ewan McGregor, Albert Finney, Billy Crudup, Jessica Lange e Marion Cotillard foi elogiado pelos críticos, representando um retorno à sua forma característica.
Nas palavras do grande Roger Ebert: “Como Burton é o realizador, “O Grande Peixe”, é claro, é um filme bonito, com um estilo visual fantástico que poderia ser chamado de Felliniesco se Burton ainda não tivesse conquistado o direito ao adjetivo Burtonesco”.
Prosseguindo, no ano de 2005, Tim Burton brindou os fãs com duas obras inesquecíveis. A primeira delas foi a sinistra releitura de “Charlie e a Fábrica de Chocolate”, inspirada na obra de mesmo nome do renomado autor britânico Roald Dahl (1916 – 1990).
Em seu texto para a revista Empire, William Thomas define: ““Charlie e a Fábrica de Chocolate” combina deliciosamente os dois estilos favoritos do diretor: Grimm gótico-lite e ostentação pop-art. Burton não tem estado tão exultante visualmente desde que levantou as baquetas de Gotham”.
Logo em seguida, veio a animação dramática e de estética gótica em stop-motion, “A Noiva Cadáver”. Essa narrativa tem suas raízes em um conto russo-judaico do século XIX e se desenrola em um fictício cenário da Inglaterra vitoriana. A realização deste último foi uma colaboração entre Burton e Mike Johnson.
Ambos os filmes lograram um retumbante êxito nas bilheteiras, conquistando uma expressiva audiência.
Em 2007, ocorreu o lançamento da intrigante fusão de gêneros – terror, suspense e musical – “Sweeney Todd, o Terrível Barbeiro de Fleet Street”. O filme contou com a notável atuação de Johnny Depp, Helena Bonham Carter, Alan Rickman, Timothy Spall, Jamie Campbell Bower e Sacha Baron Cohen. A trama foi adaptada de um renomado musical da Broadway, cujas letras e músicas foram criadas por Stephen Sondheim, enquanto o libreto foi concebido por Hugh Wheeler.
Tanto o filme quanto o musical encontraram inspiração no romance homônimo de Thomas Peckett Prest, originalmente publicado em 1846, sob o título “Sweeney Todd ou The String of Pearls”.
Em 21 de dezembro de 2007, Anthony Oliver Scott, o A.O. Scott, do The New York Times tangibilizou bem meu sentimento ao assistir essa obra: “Pode parecer estranho que eu esteja elogiando uma obra de tamanha selvageria incessante. Confesso que também estou um pouco assustado, mas já faz muito tempo que um filme não me dá pesadelos. E o poder perturbador de “Sweeney Todd” vem acima de tudo de sua recusa estimulante de qualquer consolo sentimental, da disposição do Sr. Burton de levar as implicações mais terríveis da história às suas conclusões mais sombrias”.
A maestria da produção conferiu a Johnny Depp sua terceira nomeação ao cobiçado Óscar de Melhor Ator. Além disso, o filme conquistou o prémio de Melhor Direção de Arte, atribuído a Dante Ferretti e Francesca Lo Shiavo. O filme também recebeu uma nomeação na categoria de Melhor Guarda-roupa, reconhecendo o trabalho de Colleen Atwood.
Em 2010, finalmente chegou aos cinemas o altamente aguardado “Alice no País das Maravilhas”, uma adaptação das controversas obras literárias “Alice no País das Maravilhas” e “Alice Através do Espelho” escritas pelo intrigante Lewis Carroll (1832 – 1898). No elenco, encontramos Mia Wasikowska no papel de Alice, Johnny Depp interpretando o excêntrico Chapeleiro Maluco, Helena Bonham Carter dando vida à enigmática Rainha Vermelha, e Anne Hathaway personificando a graciosa Rainha Branca. O elenco de apoio incluiu nomes como Alan Rickman, Matt Lucas, Crispin Glover, Geraldine James, Marton Csokas, Lindsay Duncan, Imelda Staunton, Michael Sheen, Stephen Fry, Timothy Spall, Jim Carter e Christopher Lee.
Apesar das críticas não tão favoráveis, o filme arrecadou impressionantes 1 bilhão de dólares em todo o mundo, solidificando-se como a obra de maior sucesso comercial na carreira de Burton.
Os três filmes mais recentes dele amalgamam géneros de maneira significativa ao se levar em conta a estética visual. Isso se deve à maneira como as narrativas são conduzidas, aos personagens intrincados e ao estilo visual que equilibra cores vibrantes com cenários que transcendem a necessidade de explicações detalhadas.
Desde um drama íntimo e humano em “Grandes Olhos” (2015), passando por uma fantasia excêntrica em “A Casa da Senhora Peregrine para Crianças Peculiares” (2016), até a releitura em live-action do clássico “Dumbo” (2019) da Disney, esses filmes evidenciam a versatilidade do realizador, que sempre permanece fiel à sua essência, essa que permanecerá perene e inabalável.
Enfim, com obras inesquecíveis que se consolidaram como clássicos, conquistando tanto o público quanto a crítica, emergem elementos que podem ser considerados como características únicas e intrínsecas ao próprio realizador. Um exemplo é a constante presença de um semblante tristonho e melancólico em seus personagens.
Tal atmosfera também se estende aos cenários, figurinos e maquiagens, que são impregnados com uma notável dose de decadência, inércia, apatia, ganância e excentricidade. Como resultado, sua linguagem estética gótica e sombria transforma-se em um componente integral na construção de uma diversidade de géneros cinematográficos.
Essa é, de fato, a assinatura distintiva de Burton – um realizador excepcionalmente versátil e insubstituível. É exatamente por essas razões que ele permanece como um profissional profundamente intrigante e continuará a ocupar um lugar de relevância na história do cinema mundial.