O cinema do espetáculo, das grandes estrelas, das promoções, dos grandes orçamentos, ainda tende a dominar tanto o quanto se fala dos filmes bem como o tempo e o modo através do qual permanecem em sala. Esta é igualmente uma conversa em que os cinemas, em franca recuperação de público e receitas de bilheteira, estão interessados e, por isso, “Titina” pode surgir tímido por entre as estreias mais recentes.
A sua timidez esconde uma pequena delícia de cinema animado que se baseia na história real do explorador norueguês Roald Amundsen e o engenheiro italiano Umberto Nobile e nas aventuras e desventuras por que vão passar ao tentar atingir o Pólo Norte, em 1926, por via aérea.
No meio da expedição, surgem querelas nacionalistas e egos insuflados que contrapõem Amudesen a Nobile e, acima de tudo, colocam em perigo a vida da grande amiga de Nobile, a cadelinha Titina, que os acompanha em todo o seu percurso.
“Titina” é a primeira longa metragem da realizadora norueguesa Kajssa Naess, cujo percurso tem sido marcado pelo seu trabalho nas curtas metragens, nomeadamente por “It Was Mine”, de 2015, com argumento da autoria de Paul Auster, mas inclui muitos outros títulos.
Para a direção artística, Naess trouxe Emma McCann, nome experiente ligado a títulos como “O Mágico”, “A Tartaruga Vermelha” e “La fameuse invasion des ours en Sicile”, e que traz a “Titina” um pouco da sua marca visual e emocional.
“Titina” é, sobretudo, um filme sobre emoções, lealdade, proximidade e compromisso, não tem interesse em apenas contar a história que, à época, foi uma enorme sensação nos meios de comunicação.
Por um lado, tudo se centra na perspetiva da pequena cadela que, sendo pequena, é a maior prioridade de Nobile ao longo de todo o percurso. Em oposição à perspetiva do pequeno animal, profundamente acarinhado e querido pelo seu dono, encontra-se a perspetiva dos homens de que se espera que sejam grandes, mas que, na realidade, são muito pequenos no que toca ao caráter.
A figura do Mussolini é disso o maior exemplo: o ditador é tão baixo e mirrado que tem de ter sempre uma enorme plataforma para onde saltar para conseguir ser visto e ouvido. É ainda mostrado de forma ridícula, ora brincando com maquetas de guerras reais e imaginárias, ora empoleirando-se nas mobílias para se sobrepor em relação aos outros.
Os grandes homens, feitos de grandes ambições, são o segundo plano de “Titina”, que resgata, em tempos cada vez mais hostis e violentos, uma história de amor verdadeiro que vira o foco para outras prioridades: as do coração.
Belissimamente desenhado, feito de diversas técnicas e perspetivas, “Titina” apenas peca um pouco no ritmo que impõe à história, sobretudo no início, como que se esquecendo de imprimir algum necessário dinamismo a personagens que não têm assim tantos diálogos atribuídos.
Ainda assim, estando muito ligado a um estado contemplativo que privilegia o meio natural como espaço de meditação metafísica, mais do que um espaço físico que é conquistado, esse mesmo ritmo parece ser intencional e apenas é aqui mencionado porque a autora destas linhas o considera o seu calcanhar de Aquiles.
É ainda um filme sobre as paisagens e o quanto estas se refletem nos homens ou o quanto os homens as procuram como forma de colmatar as suas próprias necessidades emocionais. Esse aspeto está quase sempre relegado para segundo plano porque muitas das mais belas aventuras têm Titina como protagonista – basta lembrar os momentos em que trava conhecimento com uma majestosa baleia que a vai ajudar a sobreviver no Pólo Norte.
“Titina” é também um belo filme para ver em família, apesar de ser indicado para públicos infantis mais crescidos, em torno dos 6 anos. Muitos dos seus temas requererão um amadurecimento maior para serem mais apreciados, mas a beleza visual e a personalidade vibrante de Titina são chamarizes certos até para espetadores mais jovens.
É na mestria e criatividade da sua animação que vive o grande trunfo de “Titina” porque traz para o seu centro uma panóplia enorme de diferentes traços e estilos e, sabendo dar ao filme a respiração certa, não vive nem pretende viver do chamamento do espetáculo e de temas já muito vistos e contados.
Se, muitas vezes, no cinema mais comercial de animação o espetador é alimentado sobretudo pela forma, “Titina” é um conforto visual, mas uma viagem que aquece e consegue ainda ensinar um pouco da História que se vai perdendo, misturando à animação imagens de época. A própria realizadora mostrou-se surpreendida pelo facto de muitos noruegueses desconhecerem o episódio que “Titina” mostra sobre a superestrela que foi Amundsen.
Nos tempos que correm, se o papel do cinema é o de trazer novos mundos aos mundos dos que o veem e sonham, então “Titina” tem o coração completamente no lugar certo.
