“Toda a Beleza e a Carnificina” – A arte, o ativismo e o testemunho de uma sobrevivente

"Toda a Beleza e a Carnificina" (2022), de Laura Poitras "Toda a Beleza e a Carnificina" (2022), de Laura Poitras

“Toda a Beleza e a Carnificina” (“All the Beauty and the Bloodshed”), da realizadora norte-americana Laura Poitras, galardoado com o Leão de Ouro no Festival de Veneza e com uma nomeação ao Óscar de melhor documentário (2023), conta-nos numa narrativa autobiográfica os mundos paralelos da fotógrafa septuagenária Nan Goldin.

Conhecida por um trabalho que explora a marginalidade e alienação das culturas Queer e LGBTQIA+, a crise do HIV/SIDA e a epidemia dos opiáceos nos EUA – entre as quais a partilha dos fotogramas da sua renomeada obra: The Ballad of Sexual Dependency (1986) – a vida e obra de Nan Goldin projetam-se no documentário de Poitras como forma de denuncia política de um sistema de medicalização necropolítico que afasta, marginaliza e elimina determinadas existências consideradas “anormais” da inteligibilidade do status quo da vida moderna.

O nome do documentário, All the Beauty and the Bloodshed – um excerto do diagnóstico psiquiátrico de Bárbara, a irmã mais velha de Goldin, que se suicidara num manicómio ainda adolescente -, mostra a astucia de Poitras na narrativa que constrói em torno da trajetória pessoal, artística e ativista de Goldin e sua luta contra o nome da família Sackler – a multimilionária detentora da gigante farmaceutica Pardue responsável pela comercialização do opióide OxyContine e da escalada da toxicodependência e mortes por overdose nos EUA – , que patrocinando grandes museus internacionais em que a artista expõe como o Metropolitan Museum of Art, o Guggenheim (NY) e o Louvre encontram uma forma de lavar o seu nome das polémicas causadas pela avalanche de sangue da OxyContine.

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A dependência mostra ser o principal fio condutor no filme. Mostrando o percurso de vida da artista, nascida numa família disfuncional e repressiva que em tudo mostrara contribuir para o encarceramento e trágico suicídio da sua irmã Bárbara, Nan Goldin procuraria na Nova Iorque dos anos 1970 a liberdade de expressão e criação artística que impulsionaria a sua carreira fotográfica. Documentando o uso de drogas e trabalho sexual, à crise epidémica do HIV/SIDA e perseguição policial aos homossexuais, Drag-Queens, Transexuais e trabalhadores/as do sexo, a artista revela a cultura underground nova iorquina que, muito embora desmerecida socialmente e dos meios artísticos na época, a adotaria como família.

É neste contexto de denúncia que o filme se desenrola. Começando com a manifestação do grupo de activistas PAIN (Prescription Addiction Intervention Now) – no qual Goldin faz parte – no Metropolitan Museum of Art em 2018, o documentário revela a impunidade judicial dos gigantes e poderosos Sackler e do moroso processo de reconhecimento do verdadeiro legado da família: o espetro interminável de miséria social e imaginável número de vidas e famílias perdidas precocemente que através daquele fármaco continuara a alimentar os seus cofres e prestigiados museus e galerias de arte por todo o mundo.

Este documentário ao abordar o uso de fármacos – drogas legais – e o poder de certas instituições em fazerem morrer ou de deixarem viver remete-nos irremediavelmente para duas obras pioneiras do estudos Queer e da sexualidade: A história da sexualidade – A Vontade de Saber de M. Foucault (1976) e Testo Junkie: sexo, drogas e biopolítica na era farmacopornográfica de P. Preciado (2013), nos quais através dos conceitos de “biopoder” e de “sexopolítica” os autores nos explicam como os corpos, o género, a sexualidade entre outras categorias identitárias são criadas para regular e disciplinar as subjetividades em determinados padrões de normalidade que satisfaçam o sistema industrial capitalista contemporâneo.

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Foucault e Preciado mostram-nos como o desenvolvimento tecnológico e médico advindo da Segunda Guerra Mundial e da Guerra Fria criaram novas formas de viver e governar o corpo, o sexo, a sexualidade e o género. Exemplo disto é o processo de medicalização e regulação da vida íntima por meio de fármacos como a pílula anticoncepcional – cujo objetivo principal mostrava ser o controlo das populações pobres ou “indesejáveis” – do Viagra – através da regulação do desejo e da atividade sexual – ou ainda os procedimentos cirúrgicos desenvolvidos depois das duas grandes guerras capazes de reconstruir a pele e alguns outros órgãos humanos que viriam a ser transformados em cirurgias cosméticas e sexuais.

“O sucesso da indústria tecnocientífica contemporânea consiste em transformar a nossa depressão em Prozac, a nossa masculinidade em testosterona, a nossa ereção em Viagra, a nossa fertilidade ou esterilidade em Pílula, a nossa aids em triterapia, sem que seja possível saber quem vem primeiro: a depressão ou o Prozac, o Viagra ou a ereção, a testosterona ou a masculinidade, a Pílula ou a maternidade, a triterapia ou a aids. Este feedback performativo é um dos mecanismos do regime farmacopornográfico.”

Testo Junkie: sexo, drogas e biopolítica na era farmacopornográfica (2018:37)

Neste aspeto, Preciado, em Testo Junkie, mostra uma análise mais pormenorizada sobre como os processos farmacopornográficos foram construídos sobe pessoas provenientes ou em situação de reclusão – os homossexuais, os negros, os “loucos”, os “criminosos”, as pessoas que estavam no exército, na prisão, em hospitais psiquiátricos ou nos territórios colonizados do sul global – produzindo novas formas de necropolítica e produção de subjetividades. O vírus do HIV/SIDA e a retórica moral que fomentava o medo em torno da homossexualidade mostra também ser um recurso útil para discutir as formas como o Estado encontra formas de gestão e coerção política em torno de novos padrões comportamentais sobre sexo, género, sexualidade, identidade sexual e do prazer sexual.

Muito resumidamente, o que Nan Goldin, Laura Poitras, Paul Preciado e Michell Foucault nos oferecem são pertinentes manifestos em torno da responsabilidade de combater os estereótipos, a invisibilidade, o estigma e a perseguição criadas por hierarquias de poder contra populações socialmente marginalizadas assim como trazer à superfície a beleza, criatividade, as infinitas possibilidades de ser e se reinventar do universo Queer.

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