“Toni Erdmann” estreou em Portugal no já ido ano de 2017, realizado por Maren Ade e com duas portentosas interpretações por parte dos actores Sandra Hüller e Peter Simonischek. Apanhou quase toda a gente de surpresa, da crítica ao público, e arrebatou inúmeros prémios, tantos que a memória não abarca – não é isso que importa.
Este texto pode parecer extemporâneo, anacrónico, ao mesmo tempo que é a prova viva de que o cinema é mais do que apenas imagem em movimento e se entrelaça com a vida, como que enviando subtis mensagens a que se pode estar ou não receptivo.
A novidade reside nem sempre nas estreias, mas nos olhares e no significado ou ressignificação assumida para quem assiste ao filme. Surpreende “Toni Erdmann” por essa capacidade de falar para lá do tempo, pela surpreendente universalidade de temas, sem peneiras nem pretensões, que não permite que tão depressa se descontextualize.
A sua inclusão no catálogo de filmes da HBO é um sinal da sua boa saúde e acabou por apanhar desprevenida a autora do texto, que não tinha intenção de o ver. Um tropeço que deu origem não só à escrita, mas também à reflexão acerca dos momentos certos para ver certos filmes.
No contexto actual, “Toni Erdmann” toca de modo ainda mais pungente as cordas da sensibilidade, ainda mais presente e com ainda maior sentido, se assim se quiser. O filme contém em si todo o leque de emoções pelas quais os seres humanos costumam passar, embora através do enganador filtro do humor.
Sob a capa da comédia, deita um olhar crítico e até amargo sobre a dilaceração das relações sociais e de trabalho. Ines Conradi (Sandra Hüller) representa o lado mais cínico dessas relações, em contraste completo com a visão próxima do seu pai Winfried (Peter Simonischek), um descontraído reformado que insiste em perseguir a filha por achá-la infeliz.
É a história de um pai que procura o melhor para a filha, a bem ou a mal, e acaba a passar um longo período de férias forçadas em Bucareste, na Roménia, onde a filha trabalha de forma obsessiva em prol da fina flor do capitalismo moderno – sem remorsos até ao momento das férias.
Com tantas temáticas, o filme poderia ter corrido mal, mas certo é que consegue integrar todos os seus olhares de forma natural, sem se notar que, no fundo, olha criticamente para o mundo no estado em que se encontra: cheio de contrastes, entre a pobreza e o fausto, o materialismo e a mais completa falta de bens. Nessa ausência, Winfried encontrará benevolência, ao passo que a sua filha apenas verá o reflexo do seu vazio existencial.
Winfried é o elemento que colige, que junta, mesmo que a sua filha Ines sinta o contrário, incomodada com a sentimentalidade da perda ou indiferente à família imperfeita, disfarçando o desinteresse numa ou duas chamadas fictícias para o estrangeiro.
E quão enorme é o seu amor pela filha que o faz encarnar um personagem grotesco, ridículo – um conselheiro profissional de vidas, com proeminente dentadura postiça e peruca – para se voltar a aproximar dela e, no fundo, para a salvar de si mesma.
É o seu lado desconcertante e humano que vai provocar o início da derrocada emocional da ultra profissional Ines. Algumas simples perguntas sobre a felicidade ou a razão pela qual se vive vão desencadear uma gradual crise no seguríssimo mundo de Ines.
O seu mundo, contudo, é alheio ao que se passa no mundo exterior e é significativo, por exemplo, que durma durante toda a viagem de carro pela Roménia real (país onde trabalha para uma vampiresca empresa petrolífera), sem se aperceber do abismo que a separa daquelas pessoas. Winfried, pelo contrário, não receia esse encontro e até o procura, expresso de forma humilde na cena da casa de banho do pobre cidadão que ainda lhe oferece maçãs sem querer nada em troca.
Ines não se comove com a pobreza ou o despedimento de trabalhadores para dar lugar ao outsourcing – que palavra bizarra, acha Winfried, o que significa afinal? Não se comove perante a morte ou as pessoas que se importam com ela, mas chora quando perde um evento no trabalho.
Aos poucos, o “vírus” da humanidade irá afectá-la de forma calorosa e comovente, sem que o filme caia no facilitismo ou tente declaradamente puxar a lágrima. Acaba por até colocar inesperadamente no vórtex da loucura todos os que giram em torno de Ines, que mal a reconhecem depois da surreal festa de aniversário.
Pode ser assustador, um enorme filme alemão a versar sobre sentimentos crus ao longo de 162 minutos, mas durante esse tempo “Toni Erdmann” está a construir o assalto final à alma do espectador. Sub-reptício, vai espantar todos os espíritos, iluminar as almas e fazer rir com gosto – em algumas ocasiões é possível ter de pedir desculpa pela gargalhada mais acesa.
“Toni Erdmann” é uma personagem fictícia, inventada com os melhores propósitos, infiltrada numa sociedade em que todos ironicamente fingem ser outros pelas razões erradas. O verdadeiro Toni é o homem sem ambições materiais que vive, na realidade, para a ambição suprema de resgatar as relações humanas do abismo da distância.
“Toni Erdmann” veio ao mundo para expor as fragilidades da globalização e com isso colocar o foco em como isso afecta de forma profunda não só as relações mais próximas como também as vidas de pessoas com que aparentemente não existe qualquer vínculo.
O vínculo emocional que Ines perde consigo mesma compromete não só as suas relações próximas, esvaziando-as de sentido, mas também permite que, no âmbito do seu trabalho, não alcance o modo como as suas ações corroem o tecido social do país que mal observa. Pontualmente, fará uma piada acerca do maior centro comercial da Europa em que ninguém tem dinheiro para fazer compras.
E que tristes são os tempos em que as assimetrias sociais apenas se avistam da janela do condomínio e às quais se podem virar costas, comer bolos e beber champanhe.
Este texto não foi escrito ao abrigo do Acordo Ortográfico
