«Trainspotting» – nada se cria, nada se perde, tudo se transforma.

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Trainspotting (1996) é um filme estranhamente arrebatador. Danny Boyle leva-nos até um submundo de ruína, vestido com as cores mais vívidas, dando ao filme um ar menos pesado e sombrio, para o libertar de qualquer condicionamento estético que leve a interpretações moralizantes. Há, neste filme, uma desconstrução, tão bela quanto inteligente, do lugar que os químicos ocupam na nossa vida e nos nossos corpos. No fundo, todo o ser tem em si essa nobre potência de se transformar.

O argumento do filme é adaptado de um livro homónimo de Irvine Welsh e fala-nos da vida de um grupo de jovens, viciados em heroína, que deambulam pelos subúrbios de Edimburgo. É desde as intensidades de Renton (Ewan McGregor) que a história nos é narrada; é desde a sua interioridade que vamos tendo acesso a uma visão de mundo conturbada, reduzida a uma oscilação entre o consumo de drogas e a vontade de as largar. São vários os momentos em que Renton é um ser contemplativo, que se separa por momentos da agitação que o rodeia, para pensar sobre o rumo da sociedade, que amiúde descarta este seu gesto reflexivo para se confundir com a massa inerte que se movimenta por um sem número de forças que lhe são exteriores. Só a partir da força reflexiva destes momentos poderá surgir uma força interior em forma de lei, que Renton precisa para conseguir levar a cabo esse feito épico que é voltar a si mesmo, e também, a introdução à “vida chata”: ao salário, à TV, ao frigorífico… Onde alguns rapidamente vêem apenas “o junkie”, a história quer-nos mostrar, sobretudo, um ser pensante…

O filme mostra bem a nossa natureza química: tudo são processos de transformação, e o nosso corpo em conjunto com a nossa mente, têm a capacidade de os sentir, de lhes dar uma interpretação, de os viver de uma forma singular. O pequeno comprimido, a água que o acompanha; o café no fim do almoço, o cigarro que o acompanha; aquela descarga de alegria que nos eleva o espírito; o irromper de uma tristeza que se condensa em lágrima; as descargas torrenciais de cólera de Begsbie (Robert Carlyle); os orgasmos de uma noite, que se podem comprar com dois cocktails e uma conversa banal, onde os fonemas se perdem ao se misturarem com o excessivo volume da música; É nestes devires que habitamos, são eles que nos compõem e recompõem sem cessar.

O filme é composto de uma forma magistral. Existe uma poética das imagens que vem exacerbar o poder narrativo do filme. Os dramas vividos pelas personagens são vestidos pelas cores mais vivas, sublimando todo o peso que os cenários poderiam transmitir na sua nudez. Talvez seja essa a grande missão do cinema, que a câmara, com um especial toque de midas, redima essa realidade demasiadamente despida e transforme as coisas mais banais em algo verdadeiramente belo. Danny Boyle vestiu as mais duras realidades com as vestes mais deslumbrantes. A ruína torna-se outra coisa, a mais suja das sanitas traz dentro de si um oceano pleno de luz, o borbulhar do composto de heroína é uma simples e bela efervescência imagética que se emancipa da sua condição moral… Este filme dignifica tudo o que é tocado pela câmara, sem deixar de mostrar os lados obscuros e dramáticos das vidas que estão em jogo; e fá-lo de uma maneira grandiosa, ao dizer que, aqueles seres, são ainda humanos, por vezes errantes, mas que ainda resistem de alguma forma, têm ideias sobre o mundo e sentem na pele o excessivo peso daquelas forças que os vão, lentamente, consumindo.

É uma obra que nos delicia ao mesmo tempo que nos arrebata, que nos distancia ao mesmo tempo que nos comove; mostra-nos o verdadeiro potencial do cinema, o seu cariz emancipador, transformador de uma maneira de ver e pensar o mundo que repousa amiúde sobre as estruturas ideológicas cristalizadas em dogmas de algibeira. Talvez sejam estas obras que nos façam ainda amar a vida, acolhendo a tragédia e o horror que ela sempre comporta; talvez estas imagens também nos consigam transmitir algo: que a esperança é a filha única da destruição, e é na boa arte e na vida que ambas habitam eternamente.

3Realização: Danny Boyle
Argumento: Irvine Welsh (obra), John Hodge (argumento)
Elenco: Ewan McGregor; Ewen Bremner; Jonny Lee Miller
Reino Unido/ 1996 – Drama
Sinopse:  Renton, está profundamente imerso numa dependência de heroína. Porém, tenta desintoxicar-se e sair desse estado, apesar do fascínio pelas drogas e da influência dos amigos.

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