O mais recente filme de Martin McDonagh tem dado que falar ultimamente, tanto dentro como fora dos prémios cinematográficos. Estamos perante um filme com uma grande densidade simbólica, que nos coloca a reflectir sobre a própria vida; sobre como ela é um emaranhado de forças em constante luta: algumas que nos destroem, outras que nos activam e outras que nos salvam.
Mildred (Frances McDormand) aluga três cartazes, numa estrada pouco movimentada, na tentativa de denunciar a demora das autoridades locais em fazer justiça, em relação à violação e assassinato da sua filha.
Mildred está sedenta de justiça e essa sede sacia-se através do extravasamento de uma força que tem em si algo de nobre, mas que também traz consigo um transbordamento incontrolável. O filme mostra-nos a trajectória desta força, os seus embates e encontros. Se, por um lado, ela irá ter de combater, com veemência, forças que têm a função reactiva de a castrar e deter; por outro, vai deixar-se comandar por outras que emergem como pedaços de esperança, que pretendem apaziguá-la com gestos que a redimem. A força activa que está em Mildred tem a sua primeira manifestação através da sua sublimação política na forma dos cartazes. O aparecimento destes três grandes cartazes, com “letras garrafais”, inseridas num vermelho impactante, são o acto político por excelência e o motor do argumento. Este gesto, de um só golpe, irá provocar um profundo mal-estar em todas as forças políticas policiais, que têm a função de conservar a ordem estabelecida. A polícia, o padre, o ex-marido de Mildred, são os exemplos de fontes de violência e ódio que estremecem com a presença dos cartazes. O Xerife Willoughby é o principal implicado e responsabilizado na mensagem dos cartazes, e embora faça parte de uma instituição onde reina uma esterilidade burocrática que é movida a estatísticas, irá, mesmo já sem vida, conseguir provocar uma verdadeira acção. A história do filme mostra-nos que nenhuma força está condenada a manter-se na vida reactiva e apequenadora, pois o filme é feito de ironias, de vidas que em algum momento transcendem a individualidade e deixam fluir dentro de si algo universal. McDonagh, na personagem de Willoughby, coloca a morte a falar e a dar as principais lições existenciais às outras personagens, sobre aquilo que é verdadeiramente importante na vida. Tal como nos filmes dos irmãos Coen, não sabemos que personagens têm, verdadeiramente, o protagonismo, pois todas acabam por revelar uma força capaz de ir além de si mesma, de verdadeira transcendência de si. Outro exemplo desta força de redenção é o agente Dixon (Sam Rockwell), o arquétipo do policial americano, violento, racista e homofóbico; mas que irá ser alguém a quem as palavras de Willoughby irão provocar uma epifania, que o fará quase sacrificar a sua vida para salvar o arquivo que contém o processo de Mildred.
A ambiguidade moral perpassa todo o filme e acrescenta-lhe beleza. Numa das cenas, vemos Mildred, num restaurante, a empunhar o gargalo de uma garrafa vazia, na direcção da mesa do ex-marido. Esta garrafa leva consigo a ambiguidade moral, ela tem o vidro que assumimos que irá partir em algum momento, mas que não parte; ela é a violência que antecipamos, mas que não chega a acontecer; a garrafa vazia está, de facto, cheia de uma potência humana capaz de agir no lado avesso do ódio.
Todas as personagens são muito bem construídas e possuem elevada espessura simbólica. As influências do teatro tornam-se claras no papel simbólico dos gestos, que vêm quebrar a dinâmica naturalista para provocar um distanciamento que possa criar uma percepção nova do que está a acontecer. A cena da garrafa é disso um bom exemplo, assim como a cena em que, no momento mais caótico de uma discussão, em que Charlie tem as mãos no pescoço de Mildred e Robbie (Lucas Hedges) tem a lâmina de uma faca encostada à garganta do pai, a actual namorada de Charlie entra e, perante tal cenário e com toda a naturalidade do mundo, pergunta onde fica a casa de banho. São gestos como estes que vêm fazer com que as personagens congelem e olhem para si mesmas, assim como o espectador poderá olhar para elas a olharem-se, como se ali se intensificasse o poder contemplativo e se aprendesse a olhar para as coisas desde um ponto de vista suficientemente afastado para perceber o poder destrutivo de determinados gestos.
Todo este mundo simbólico foi posto em cena com performances arrebatadoras; o argumento tem uma pulsação própria e está vivo: explode com o aparecimento dos cartazes e vai progredindo até um ponto onde já não o conseguimos ver mais, tal como um foguete que vai subindo e, pelas forças que vão atuando sobre ele, vai perdendo, naturalmente, alguma da sua força; a certa altura, perdemos o seu rastro, e não chegamos nunca a saber se aquela força bruta de vingança, de facto, explodiu. Ficamos suspensos na incerteza, como a garrafa na mão de Mildred, e resta-nos esperar que, mais uma vez, a violência cesse para dar lugar à redenção.
Realização: Martin McDonagh
Argumento: Martin McDonagh
Elenco: Frances McDormand, Woody Harrelson, Sam Rockwell
RU/EUA – 2017
Drama/Crime
Sinopse: Uma comédia dramática em torno de uma mãe em desespero e conflito com a polícia local pelo homicídio da sua filha… Depois de meses sem ser encontrado o culpado no caso de homicídio da sua filha, Mildred Hayes faz uma jogada ousada ao alugar três cartazes à entrada da cidade com uma mensagem polémica dirigida a William Willoughby, o respeitado chefe de polícia da cidade. Mas quando o seu adjunto Dixon, um menino da mamã imaturo com uma inclinação para a violência, se envolve, a batalha entre Mildred e a lei de Ebbing, descontrola-se.