“Três Rostos” – Ficções da Realidade, Realidades da Ficção

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A forma vertical que corta o ecrã inicial de “Três Rostos” é um rasgo para o incrustar da face-ecrã: a distorção providenciada pela grande angular do ecrã-smartphone cria um espaço para que esse filme de angústia e desespero – imagens de engano – se desenhe no que é uma figura de beleza, mas que chora e sufoca. Dessa escuridão granulada do noise digital, feita de figuras fantasmáticas que, mais do que crepitar, antes descrevem desenhos-pixel, constrói-se uma narrativa do terrível: entre as palavras repetidas e soluçadas da jovem Merziyeh e os sons rasgadores que percutam e intimidam, quanto mais se avança, mais se percebe que é uma forma de desespero que fica registada e tão depressa acabada numa confusão imagética de um suicídio demasiado cru.

Deste rosto primeiro, passa-se para um segundo, quieto e preocupado, olhando o filme feito: Benhaz Jafari, atriz iraniana de renome. A ligação de um filme para o outro: o discurso de Merziyeh – pedindo a ajuda de uma figura popular para o convencer da família da sua entrada e permanência no Conservatório de Artes Dramáticas – é imagem-passado de uma solução não verificada, a jovem já não vive. Jafari duvida, não encontra as mensagens que a jovem afirma lhe ter enviado. A imagética verosímil é forma da sua própria inverosimilhança. Pode ser o filme uma falsidade? É o suicídio uma montagem? Ao seu lado, ouve-se a voz masculina de quem conduz o carro onde Jafari viaja. Jafar Panahi, realizador de cinema, sabedor das técnicas, afirma não ter encontrado evidências de falsidade e de uma montagem do engano e ilusão do horrível.

Duas sequências, dois filmes, duas ações contínuas, construtoras de indagações acerca da veracidade tipológica do filme e das suas pessoas fílmicas: a) o filme é de Jafar Panahi e nele está a personagem “Jafar Panahi” que é ele mesmo enquanto ator da sua pessoa ficcional, ela que não está afastada da pessoa real; b) o rosto segundo é o da atriz Benhaz Jafari, a interpretar o papel da “atriz Benhaz Jafari”, enquanto vivência da figuração da sua imagem “figura Benhaz Jafari”; c) o vídeo filmado do rosto primeiro de Merziyeh é um filme dentro do filme de Panahi, virtualmente real e irreal, conforme possa ser lido ou duvidado como o registo factual de um acontecimento ou uma ficção montada para o engano; d) o filme de Panahi “3 Rostos” é uma ficção em que as pessoas ficcionais “Benhaz Jafari” e “Jafar Panahi” são arrastadas para uma ficção-vídeo encenada enquanto um documentário no qual as pessoas reais Behraz Jafari e Jafar Panahi vivenciam uma situação insólita decorrente da sua atividade enquanto pessoas com atividade cinematográfica e artística.

Neste seu jogo com as convenções mais genéricas do cinema – ficção/real, extra-filme/intra-filme, cinema de ficção/cinema documental, pessoal real/pessoa fílmica – Jafar Panahi questiona, uma vez mais, a função-cinema, colocando em contraponto o expectável fílmico – o que é só de um filme, a sua tessitura ficcional – e o real fora do filme – os fazedores do filme e as ideias-discurso que querem nele verter – e ainda o real/irreal dentro do filme – os níveis de verdade e falsidade que na sua diegética se colocam. Se Jafar Panahi faz assim um filme sobre si mesmo como realizador a fazer de si mesmo como realizador, fá-lo enquanto criador da sua ficção de cineasta que não é mais do que ele como sujeito – fazedor de filmes – pessoa em existência, extensão do seu ser para o seu cinema e desse seu cinema, para assim perfazer um círculo em que cada um é documentário e ficção de si mesmo, registo de uma realidade que se ficciona e de uma ficção que se torna real. Daí que se possa assumir que ele seja o terceiro rosto de que fala o título do filme: é a terceira pessoa/personagem a surgir, é originalmente um rosto que mais se ouve do que se vê e é, finalmente, o rosto daquele que filma quando não pode estar a filmar – Jafar Panahi, pessoa real, está proibido de filmar – assim se filmando a não poder filmar.

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Das personagens para os espaços e de novo para (outras) personagens: Jafari e Panahi, no processo de desvendar a veracidade do vídeo da morte de Merziyeh, afastam-se do seu setting urbano e embrenham- se nos espaços montanhosos e rugosos de um Irão de outras etnicidades. Os idiomas comunicantes fogem da centralidade persa e ramificam para o azeri e para o turco. A valência da conversação, com capacidade ou incapacidade de comunicação efetiva, enquadram, uma vez mais, a construção de microficções da especificidade étnica: a idosa que passa grande parte do seu tempo na sua futura sepultura, a regra e a convenção das buzinadelas mútuas para decidir qual dos carros passa primeiro na estrada de um só sentido, o homem que dá a Panahi a prepúcio cortado do seu filho para que possa inspirá-lo a ter um futuro melhor e todas elas radicando na de Merziyeh, a de uma jovem rapariga admitida no Conservatório e que quer ser atriz, que cria/realiza um vídeo falso em que encena a sua morte para chamar até si uma atriz popular e, com a sua ajuda, conseguir convencer a família a deixá-la estudar arte dramática. Se todas estas microficções se imbricam umas nas outras – e na ficção maior de Panahi – fazem-no enquanto uma materialidade do oral e do ato da fabulação e enquanto conversação, efeito maior da comunicação dos dialetos dos dois espaços- cultura.

O aspeto marcadamente realista do cinema de Panahi ressalta, uma vez mais, nos gestos e nas formas de cumprimentar, receber e falar com o Outro. Há toda uma veracidade, tanto no bom como no mau receber: no cumprimento de mão e a interjeição positiva dos locais, no grito e no insulto do irmão de Merziyeh, mas há sobretudo e sempre, uma história que se conta, uma narrativa que se partilha, mesmo quando é a de uma personagem de quem não se vê o rosto: a atriz esquecida e caída em desgraça, que recebe Merziyeh nos três dias da farsa (ficção). Sobre ela contam como era famosa antes da Revolução e uma “saltimbanca”, como é alguém que faz o que quer. Quando Panahi se aproxima dela, vê-a a pintar, mas não lhe consegue ver a face, ela está de costas. Será ela, afinal, o terceiro dos três rostos, outra ficção que se conta, mas que fica para ser melhor contada, pela sua própria voz ou pela de Panahi? Talvez num outro filme.

Um que possa ser a continuação, da cena final deste: o parar do SUV de Panahi, a troca de buzinadelas, a espera pelo carro que há de vir, o caminhar de Jafari pelas três curvas que a levam até ao cimo da colina, a corrida de Merziyeh, que passa pelo carro e corre em direção de Jafari e, por fim, o grupo de carros que carregam vacas destinadas a serem cobridas por um boi acidentado e cujo o dono se havia cruzado com Panahi no dia anterior. Sob o ponto de vista subjetivo do cineasta Panahi, tudo isto se passa, o terceiro plano-sequência do filme, após os dois que o abriram. Três planos-sequência que são 3 rostos, dois para quais se olha, e um que olha, mas que não se vê. Olha Panahi. Forma de um cinema que é um que olha e regista, marca e aprofunda, as faces rugosas, as montanhas terrosas, as curvas sinuosas, os espaços e línguas das etnias, os caminhares e as palavras das mulheres.

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