A trilogia do silêncio de Theodoros Angelopoulos
Parte II: “O Apicultor” (1986)
O filme abre com o casamento da filha de Spyros (Marcello Mastroianni), personagem principal do filme, um professor recém reformado prestes a iniciar a sua viagem primaveril, que faz anualmente pela Grécia, seguindo uma rota específica de modo a que as suas abelhas possam extrair néctar para produzirem mel. Nesta viagem encontra uma rapariga (Nadia Mourouzi), sozinha, sem ligações ou raízes em qualquer parte, a quem Spyros dá boleia durante uma parte do percurso, sem compromissos. No entanto, os seus caminhos acabam por convergir mais do que seria de esperar inicialmente.
A primeira cena, do casamento, é bastante reveladora sobre a personagem de Mastroianni e das suas relações com o resto da família: vemos um homem isolado, afastado de Anna, sua mulher, e também afastado do filho, na pose da fotografia (que conta ainda com os noivos), sem um sorriso para exibir ou palavras para oferecer. Aliás, Spyros evita as palavras ao máximo, e prefere ficar em silêncio a grande maioria das vezes. De seguida, um pássaro entra na casa do antigo professor, onde é celebrada a união da sua filha, e todos os convidados tentam apanhar a ave, seguindo-a, com os olhos postos no teto. Spyros, num primeiro instante, junta-se aos demais, para imediatamente depois ficar enquadrado na sala, sozinho. Se a ave é um símbolo de liberdade e esperança, percebemos que não existe para ele nenhuma das duas. Ainda na celebração, ao descer as escadas, Anna assusta-se ao encontrar o marido inesperadamente, e deixa cair os copos que carregava. A tensão daquela relação é explícita pela comunicação não verbal e por um silêncio entre o casal que se torna ensurdecedor. Spyros não consegue olhar a esposa nos olhos uma única vez, enquanto vai apanhando os pedaços de vidro do chão, e ela não consegue esconder a sua tristeza ao olhar para o marido – tal como os copos, ela está quebrada.
Pouco depois de partir em viagem, a rapariga (sem nome) pede para ser deixada em qualquer lado. Numa primeira instância, Spyros tenta fazê-lo numas bombas de gasolina, mas ao ver o insucesso da jovem em conseguir boleia, chama-a novamente, para mais tarde a deixar numa localidade onde o próprio vai também ficar hospedado. Reencontram-se pouco depois, e acabam por partilhar o quarto alugado por Spyros. Talvez pense na sua filha ao ver aquela jovem, talvez queira uma relação íntima com ela, ou talvez seja um homem generoso e com vontade de ajudar aquele ser sem rumo. A meu ver, o professor encontra-se tão distanciado da realidade, tão dormente no que toca às emoções, sem qualquer vontade de acordar do coma induzido no seu coração pela passagem do tempo, que acaba por assumir uma atitude algo estoica relativamente aos acontecimentos que se sucedem à sua volta. Uma passagem em que me baseio para apoiar esta interpretação é quando a rapariga leva para o quarto um amigo, acabado de sair do exército, e eles fazem sexo, apesar de Spyros estar na cama ao lado, acordado e a ver o que está a acontecer. A sua resposta é ir para o café e passar a noite em branco, a vigiar a porta de saída do local onde está hospedado, até que o jovem militar saia e ele possa regressar, aparentemente incólume desta guerra emocional.
Logo após este acontecimento, Spyros deixa o local onde estava e vai ao encontro de um velho amigo, que dono de uma loja de eletrodomésticos. Este amigo tem uma garrafa pronta a abrir, que diz ter estado a guardar para aquela ocasião em específico. Juntos, de noite, dirigem-se a um hospital onde se encontra um terceiro homem, com problemas de saúde não revelados, e dão-lhe de beber daquela tal garrafa. Após uma interrupção por parte das enfermeiras, levam-no a ver o mar, já de manhã, e falam sobre o passado, de como os outros dois amavam Anna, mas foi Spyros quem a “roubou” para si. É ainda revelado que o gosto pela apicultura é geracional, pois o avô e o pai do ex-professor também se dedicavam às abelhas. O dono da loja, homem com dinheiro (é assim descrito pelo paciente do hospital), despe-se e toma banho no mar, enquanto os outros dois falam sobre o passado e se abraçam, com o som das ondas como fundo. Esta cena simboliza aqueles que se apegam ao passado (Spyros e o paciente do hospital), os dois homens que ficam em terra, e aqueles que o recordam, sim, mas preferem olhar em frente, para o futuro (sendo neste caso o mar um elemento purificador, de renovação e mudança).
O apicultor vai visitar a mulher uma última vez. Ao chegar à casa para qual Anna se mudou, Spyros diz que veio para a buscar, e beija-a forçosamente, numa tentativa desesperada de reacender uma chama que se extinguiu há muito tempo. Reconhece que não há agora perspetivas de atear um fogo no coração de Anna novamente. Na verdade, o coração de Spyros é que secou, fruto do isolamento constante, da erosão provocada pelo tempo em si. Antes de partir de vez, vê a esposa debaixo da luz da sala, o seu rosto iluminado, uma recordação para gravar na memória. De seguida, passa por umas bombas de gasolina, onde está uma outra filha sua, que não tínhamos conhecido até aqui. Pede-lhe desculpa por algo que aconteceu no passado, sem ser específico, e quando a filha lhe pergunta “o que está a acontecer contigo?” a resposta é, mais uma vez, o silêncio.
Spyros faz uma jornada (meta)física até às suas origens, as suas raízes, encontra-se num passado-presente. Vai visitar uma localidade onde já viveu muitos anos antes. Uma casa onde criou os seus filhos. Abre as janelas, vagueia pela casa, recorda uma altura em que cantava para a sua filha e era feliz. Continua a viajar com a rapariga sem nome, que o acompanha desde que ele viu a esposa pela última vez. O próprio apicultor foi ao seu encontro, e “resgatou-a” de um bando de jovens que, provavelmente, a iriam tratar mal e deixa-la ao abandono, como tantas vezes lhe aconteceu. Ambos procuram uma maneira otimista de ver o futuro, mas enveredam por caminhos diferentes: enquanto Spyros se transporta para o passado, sem se aperceber que está a repetir padrões que não lhe dão respostas sobre o futuro, a rapariga não tem qualquer plano ou perspetiva sobre como seguir o seu caminho, colocando-se à mercê do destino e da sorte.
Nessa localidade onde já viveu, um antigo conhecido do professor deixa-os dormir no cinema de que toma conta, apesar de ninguém lá ir nos dias que correm. Aí, Spyros e a rapariga envolvem-se sexualmente. Após ter sido tentado várias vezes (desde que se conheceram ela mostrou-se interessada nele), o culminar da sua relação torna-se o ponto de rutura da mesma, em especial para a rapariga, que pede a Spyros que a deixe ir embora. Num último esforço, um longo beijo junto à linha de comboio, acaba por ser uma despedida, e não um tónico para que se o amor entre ambos surja, como o apicultor esperaria. A última tentativa de encontrar uma resposta para a sua solidão, desinteresse emocional e isolamento, não tem sucesso. A resposta não estava na jovialidade daquela mulher, não estava naquilo que ela tinha para oferecer a Spyros, mas sim naquilo que ela não tinha nem lhe podia dar.
O segundo filme da trilogia do silêncio é um road movie envolto em tons cinzentos, tanto no que diz respeito às paisagens como naquilo que acontece no interior das duas personagens de maior destaque, Spyros e a rapariga que viaja com ele. A direção de fotografia ajuda a construir o universo do filme e consegue criar planos em que as paisagens ora remetem para locais de sonho, ora para locais onde vemos a realidade de maneira crua. O pretexto da apicultura serve para Spyros iniciar uma viagem exterior e, ao mesmo tempo interior, tentando assim descobrir a resposta para o que o leva a sentir-se tão sozinho. Sabe que algo se passa com ele, mas não consegue precisar o quê ao certo. Não consegue falar, a não ser quando se remete ao silêncio, uma interpretação de Mastroianni que mostra o talento do ator italiano: atuar num filme onde não fala a língua, (as falas foram ditas em italiano e depois, na pós-produção, em grego). Foi o primeiro ator de renome com quem Angelopoulos trabalhou, e em retrospetiva, ainda bem que o fez.
Marcello Mastroianni confunde-se com Spyros, a sua interpretação é de tal modo convincente que o ator consegue uma das coisas mais difíceis para uma estrela de cinema: fazer com o que o espectador se esqueça que quem está a representar é essa mesma estrela de cinema. O ator italiano entrou também em “La Notte” (1961), segundo filme da trilogia da incomunicabilidade de Antonioni, e é curioso que, vinte e cinco anos depois desse filme, atue na segunda obra da trilogia do silêncio, de Angelopoulos. O grego permanece fiel ao seu estilo, com planos sequência longos, optando por zooms em vez de cortes, o que cria uma passagem temporal mais intensa e incute na própria imagem o seu ritmo interno, não recorrendo à montagem para criar um efeito “intelectualmente artificial” no espectador. Podemos dizer que Theodoros Angelopoulos faz parte dos realizadores que defendem, realizam e criam o cinema poético, e este “O Apicultor” é a prova disso mesmo.