Com a promessa da realização do seu 12º filme, e à espera que o seu actor de eleição, Lee Kang-Sheng, envelheça para poder voltar a filmar com ele, Tsai Ming-Liang e o actor sentaram-se à conversa, com a moderação de Guilherme Blanc, para um auditório cheio no Centro de Cinema Batalha, no Porto, a propósito do ciclo que o Centro lhe dedica «O Tempo do Desejo», ciclo de cinema que, até agora, foi o mais visto no Batalha.
Talvez tamanha audiência se justifique por aquilo que o realizador denominou, carinhosamente, de «fãs» dos seus onze filmes, ainda que a sua expectativa aquando estudante de cinema fosse a de alcançar dez obras-primas, por oposição aos espectadores de consumo dos filmes das salas actuais de cinema (salas onde assume que os seus filmes têm poucos visionamentos). Pouco saudosista dos cinemas grandiosos de Taiwan, entretanto encerrados, e que apenas serviram de berço, desde os seus três anos, ao visionamento dos filmes nas duas sessões nocturnas (as únicas disponíveis), dia após dia, com os seus avós, que por terem um negócio de street food, desdobravam-se: primeira sessão fazia acompanhar-se do avô, e depois na segunda sessão do mesmo filme, fazia acompanhar-se da avó. Não obstante estarem longe os tempos de pouca liberdade para o visionamento da sétima arte (a Ásia serve de exemplo para a fraca oportunidade de acesso à cultura, que não seja a transmissão televisiva), Tsai Ming-Liang defende, vigorosamente, a transformação da experiência de cinema, isto é, para poder aceder e apreciar uma experiência do tipo religiosa, quase mística, é imperativo que ela aconteça num contexto de total liberdade cultural: um museu das artes. Mais do que de salas de cinema, o realizador tailandês apresenta-se como profundo admirador dos espaços culturais da Europa e do Ocidente, com destaque para o Louvre em Paris, sítio que pode acolher cinema, arte tão difícil que deve, num filme, respeitar os elementos «céu, terra e pessoa».
O realizador, que acredita que estão sempre a surgir novos espaços de cinema (e distancia-se da morte anunciada à sétima arte), bem como novas formas de expressar cinema [e desvaloriza a problemática da Realidade Virtual, técnica a que recorreu nos 55 minutos do documentário «The Deserted», (2017)], confidencia-nos que o conceito inerente a «Goodbye, Dragon Inn» (2003, vencedor do Prémio da Crítica em Veneza), nasce, subitamente, de um poema que lhe vem à cabeça e que principia o guião do filme, enquanto conhece um cinema que acabara de fechar.

Tal qual a experiência demorada, contemplativa, e de junção de peças para a compreensão do enredo por que passamos a assistir à sua filmografia, o realizador, que gosta muito de dormir, e crê que só dorme efectivamente quando sonha, cria os cenários dos seus filmes a partir dos seus sonhos, e explica-nos que não há muitos diálogos porque na vida real não há guiões que possamos seguir, e o único filme que está interessado em dar-nos, é aquele que filma a sua relação com o mundo e com a sociedade, aquilo que lhe acontece, e nessa medida, é sempre um exercício especial e particular.
Não é, por conseguinte, de admirar que Lee, ainda que coabite com Tsai, considere extremamente difícil a rodagem de filmes cujos argumentos são muito reduzidos e aos quais só tem acesso quase em cima da cena, corroborando a ideia de que, para o realizador, os actores não devem ter preparação prévia sob pena de falhar o máximo realismo desejável. Com um fundo onírico a dar corpo ao conceito fílmico (e que transparece para a tela, recordemos, em «What time is it there?» (2001) o sono de Shiang-chyi (Chen Shiang-chyi), enquanto a sua mala de viagem desaparece e reaparece sem que ela acorde, ou o sono de Hsiao-kang (Lee Kang-sheng) e da sua mãe (Lu Yi-ching) exaustos dos processos de luto), as etapas do filme são previamente pensadas pelo realizador, compondo uma peça naturalista e fantasmagórica ao mesmo tempo.




Citando Tsai Ming-Liang nesta conversa promovida pelo Centro de Cinema Batalha, «o mundo é um sítio de obra e onde surgem vírus e situações de insegurança», pelo que, é desejo do tailandês combater essa mesma realidade através de elementos de alegria ou do inusitado que possam transmitir a alegria e a valorização de estar com o Outro [recordemos aqui a presença das músicas dos anos 60 nas coreografias em «The Hole» (1998)]. Apesar da solidão inexorável inerente às histórias que compõem a vida das personagens que trespassam esta filmografia, e por que a vida é existencialmente desigual e o cinema tem que o traduzir, na visão deste realizador, as pessoas não deixam de ser vistas como «plantas» (cito o realizador), e é preciso «regá-las», em toda a dimensão que o elemento Água possui: desde o mau presságio da chuva, passando pela água morta ou a água parada (de um aquário), até ao longo plano de um choro de uma mulher.
Se, segundo a cultura oriental, as ruínas são preciosas pela história que contam e nelas se encontram bons fantasmas, então toda a representação realista das coisas arruinadas, presente nos filmes de Tsai Ming-Liang, jamais é forma de colapso, é sempre bom ponto de partida para o olhar altamente subjectivo de quem interpreta esta (brilhante) representação.