“Um Amor Extraordinário”: quando o amor não cede

Em sua discrição, “Um Amor Extraordinário” revela que a verdadeira força do amor está nos pequenos gestos que atravessam a dor
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“Um Amor Extraordinário” (2020), de Lisa Barros D’Sa e Glenn Leyburn

Certas doenças entram na casa como quem empurra a porta sem pedir licença. Não fazem barulho ao chegar, mas deixam tudo em suspensão, como se o ar tivesse ficado mais pesado. O cancro da mama é uma dessas presenças intrusas.

Em Portugal, a estatística repete-se todos os anos com a pontualidade cruel de uma maré que nunca falha. Detectam-se cerca de 9.000 novos casos por ano e mais de 2.000 mulheres morrem, números que insistem em recordar que esta é, entre as mulheres, a neoplasia mais frequente e a principal causa de morte por cancro.

Uma em cada 20 mulheres em todo o mundo será diagnosticada com cancro da mama ao longo da vida, e uma em cada 70 acabará por morrer devido à doença. É o que indica um estudo publicado na prestigiada revista científica Nature Medicine. Se as tendências actuais se mantiverem, até 2050 surgirão 3,2 milhões de novos casos e 1,1 milhão de mortes por ano, com um aumento desproporcionado nos países com baixo Índice de Desenvolvimento Humano (IDH). O levantamento revela ainda que a maioria dos casos e óbitos ocorre em mulheres com 50 anos ou mais, representando 71% dos novos diagnósticos e 79% das mortes.

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É a face numérica de um abalo profundo num dos símbolos mais íntimos do corpo feminino, essa espécie de território afectivo onde se mistura maternidade, identidade, desejo e fragilidade, e onde cada diagnóstico abre uma fissura que atravessa a casa inteira. É talvez por isso que certas histórias de amor ganham outra gravidade quando o cancro se senta no centro da mesa. “Um Amor Extraordinário”, esse filme discreto que à primeira vista passa por um drama de meia-idade, transforma-se, quando olhado com vagar, num retrato de dupla paisagem: a do corpo em luta e a do quotidiano que insiste em continuar, mesmo remendado. Não é um filme sobre o cancro, ainda que tudo gire à sua volta. É antes uma crónica doméstica de duas pessoas que aprenderam a navegar juntas os silêncios, os medos e a estranha ternura que cresce quando o futuro deixa de ser uma promessa e se torna apenas a próxima manhã.

A primeira vez que vi o filme, fiquei em casa com uma sensação estranha, quase desconfortável. Não era apenas tristeza, nem medo, mas a percepção de que, de repente, o mundo parecia mais próximo e frágil, como se a respiração de cada pessoa se tornasse audível. Joan e Tom, interpretados com uma intimidade quase física por Lesley Manville e Liam Neeson — talvez um dos seus melhores papéis dramáticos — são um casal de meia-idade na Irlanda do Norte. À primeira vista, não há nada de extraordinário neles. Vivem numa casa comum, têm rotinas comuns e discutem banalidades, como a que horas caminhar ou se o Fitbit realmente sabe que se está a caminhar.

Mas é precisamente nesta banalidade que reside a força do filme, porque o texto de Owen McCafferty mostra que o extraordinário não é necessariamente aquilo que rompe, mas aquilo que persiste: o amor cotidiano, os gestos minúsculos de cuidado e a paciência de quem permanece ao lado de quem sofre. Às vezes basta isto, duas pessoas a discordarem suavemente sobre cervejas, sopas, passos e cuidados enquanto tentam adiar o inevitável.

Quando Joan descobre o nódulo, a vida entra naquela fase em que tudo parece normal, mas já não é. Tom diz que provavelmente não será nada, porque os homens gostam de acreditar que as palavras têm poder curativo. Mas os exames começam a montar um cenário diferente, e eles seguem juntos, embora cada um por dentro avance sozinho. O diagnóstico abre um corredor estreito onde não cabem certezas e onde o amor precisa de se reinventar todos os dias.

O hospital, esse outro palco onde tantas histórias se cruzam sem nunca se tocarem, torna-se o cenário recorrente. Há o frio das salas de espera, o estalo mecânico das máquinas, a coreografia quase absurda de filas para pagar o estacionamento depois de receber notícias que mudam o rumo de uma vida. É nestes pormenores, tão banais quanto brutais, que o filme encontra o seu território mais verdadeiro, o monumental e o mundano convivendo na mesma respiração.

É também aí que surgem pequenas alianças inesperadas. Joan encontra cumplicidades entre outras mulheres que passam pela mesma jornada, e partilha sorrisos ocasionais com quem percebe o horror da queda de cabelo ou o desalento das longas horas de espera. Tom, por seu lado, descobre que a solidão do acompanhante é uma solidão plural, habitada por homens que tentam ser fortes sem saber exatamente o que isso quer dizer. Há, em todos eles, uma humanidade desarmada que o filme observa com curiosidade simples, quase generosa.

A realização de Lisa Barros D’Sa e Glenn Leyburn trabalha este mundo com precisão que nunca soa clínica. Há uma intimidade que lembra certos dramas europeus, onde a câmara parece querer proteger as personagens em vez de as expor. A fotografia alterna entre a delicadeza doméstica e a arquitetura impessoal dos hospitais, criando um contraste que ecoa o percurso emocional do casal. A banda sonora funciona como um sussurro, qualquer coisa entre embalo e murmúrio, sempre a tentar que o espectador respire um pouco melhor.

E depois há Lesley Manville. Há atrizes que carregam no rosto aquilo que não se pode pôr em palavras, e ela é uma delas. Há um momento, durante um exame, em que vemos medo e aceitação a cruzarem-se no mesmo olhar, como duas marés que não se anulam. É um daqueles instantes que ficam, porque reconhecemos ali algo que não queremos nomear, mas sabemos que existe.

A verdade é que, para além das estatísticas e dos argumentos médicos, o cancro da mama tem uma camada invisível: mostra como as pessoas mudam quando descobrem que o tempo deixou de ser abstrato. Mostra como as relações se reinventam, como o riso pode sobreviver à dor e como a vulnerabilidade pode ser a forma mais pura de coragem.

Na sua discrição, “Um Amor Extraordinário” lembra que a vida continua, mesmo quando parece impossível. E lembra que, no fundo, o que nos salva é quase sempre a soma desses gestos pequenos: uma mão dada na hora certa, um silêncio partilhado, uma piada que não devia fazer sentido mas acaba por fazer. É aí que a crónica se cumpre. É aí que o amor, mesmo ferido, continua a ser nosso.

O filme encontra-se disponível gratuitamente no canal do YouTube do Filmelier.