Um dos tesouros escondidos em Cannes: “Under The Fig Trees”. Falamos com a realizadora

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Cannes está repleta de bons filmes, mas estão todos longes da competição oficial, de onde ainda está para sair uma grande obra-prima desta 75ª edição. No entanto, são nas seções paralelas onde estão todos os tesouros escondidos do festival. E da Quinzena dos Realizadores chegamos a Under The Fig Trees, o magnífico filme de estreia da realizadora tunisiense Erige Sehiri.

É quase como tivéssemos revendo o ensemble proposto por Carla Simón e os seus pessegueiros, em Alcarrás, vencedor do urso em Berlim, não fosse o filme da realizadora tunisiense ser muito superior na sua forma como explora as complexidades de cada uma das suas personagens.

O filme tem uma premissa muito simples. É sobre um dia de trabalho dos moradores de uma comunidade a colher figos numa fazenda no interior da Tunísia. Começa com o patrão a ir buscá-los com a sua camioneta nas primeiras horas do dia e acaba quando o sol está a se pôr, e o mesmo patrão a efetuar os pagamentos por mais um dia de trabalho.
O que acontece debaixo dessas figueiras e as conversas que eles têm entre si é de uma beleza acachapante: eles flertam, falam sobre a vida e a morte, e sobre as (im)possibilidades do amor.

É também um filme que acredita que não há mais espaço nesta Tunísia patriarcal para esta juventude inquieta. Por meio de conversas às vezes (aparentemente) banais, às vezes um tanto espinhosas, encontramos uma história de um amadurecimento coletivo, onde rapazes também são vítimas do sistema que os aprisiona, e sobre meninas que sonham com um futuro que as libertem.

Falamos com a realizadora, que está em Cannes divulgando o seu belíssimo filme.

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É  muito impressionante como os diálogos e o ambiente são muito naturais e realistas. Por uma hora e meia nos esquecemos que estas pessoas estão na verdade interpretando papéis. O seu elenco é composto principalmente por não atores, o quão difícil foi transformar estas pessoas em bons atores?

Às vezes eles se esqueciam de que estavam desempenhando um papel! E sim, são todos não-atores. Em primeiro lugar, há muito poucos atores daquela região e eu queria trabalhar com pessoas que falassem o dialeto e sotaque particular daquelas aldeias berberes. Trabalhar com não-atores foi uma forma de homenagear essas pessoas que não vemos nos filmes e dar voz à elas. Era impensável para mim imaginar ter atores imitando aquele sotaque.

Lembro que as pessoas ficaram surpresas quando começamos a organizar um casting na região. As pessoas das aldeias diziam: “por que pensam que podem encontrar talentos por aqui?” Isso aumentou ainda mais a minha vontade de fazer o filme lá. 

Os desafios vieram do fato de eu ter que lidar com a formação e o ambiente familiar dos atores. Mas eu realmente pensei que seria mais difícil do que isso. Os atores eram muito generosos e naturalmente talentosos para a improvisação. Às vezes eles exageravam algumas reações, ou reagiam de forma diferente. Mas repetimos muito as cenas até chegarmos no tom certo. E eles conseguiram. O mais importante para mim foi encontrar esse tom. 

Os diálogos foram roteirizados ou também improvisados?

Alguns diálogos foram roteirizados e outros não. Muitos deles mudaram durante a repetição. Foi um processo de escrita orgânica de bate e volta. Como há muito deles nos personagens que interpretam, eles improvisaram muito. Era mais sobre a situação, seus gestos e um humor particular que eu queria focar. 

Você vem de documentários e essa abordagem naturalista do documentário é vista em Under The Fig Trees. Quais são as principais diferenças ou desafios, se quiser, entre filmar documentário e ficção?

Eu diria que há mais liberdade em fazer ficção, mas filmar a realidade tem algo muito especial porque a vida é imprevisível, e às vezes a realidade vai além da ficção. Ao fazer um documentário, você presta mais atenção na reação das pessoas, nos gestos e isso pode tornar um filme de ficção mais real. 

Algo que noto no seu filme é que as garotas falam muito sobre seus desejos e ex namorados de uma forma muito livre… às vezes até com outros garotos. Me lembrei de um caso muito conhecido de um “crime de honra” que aconteceu em 2014 na Tunísia, na mesma região onde filmou o seu filme. Uma menina de 13 anos que foi queimada até a morte pelo próprio pai por ser vista a voltar para casa com um menino. No entanto, no seu filme elas parecem muito mais livres para vocalizar os seus desejos. A realidade para essas meninas num ambiente opressivo e conservador como este está mudando? O desejo de liberdade é mais forte que o medo da morte? 

Eu lembro dessa história. As pessoas na Tunísia foram às ruas se manifestarem na época. Felizmente crimes de honra são muito raros na Tunísia, mas eles ainda existem, de fato. Mas sim, há esse sentimento de que isso pode acontecer. O medo da vergonha às vezes é mais forte do que o medo da morte. Mas a geração mais jovem está provando que as coisas podem mudar, mesmo que possamos sentir que as mudanças aconteçam em um determinado perímetro, como no filme.  

Há uma cena em particular que sugere uma possível tentativa de estupro… no entanto há uma sutileza em como ela é executada, sugerindo que este tipo de ameaça pode vir de qualquer lugar… inclusive daqueles que estão muito próximos de você.

A ideia de ter a cena do assédio é inspirada em muitas discussões que tive com mulheres que trabalham nas fazendas. Isso acontece com muita frequência e elas não podem falar sobre isso. Eu queria construir o personagem do patrão como se ele estivesse olhando para aquelas garotas como se fossem frutas, como se pudesse se servir à vontade. Eu queria sugerir que o assédio ou estupro poderia vir de qualquer lugar como é na realidade também, pois isso faz parte do cotidiano delas. Eles quase não fazem um grande negócio com isso. E isso é realmente trágico.

No entanto, há também um contraste interessante no filme. Há uma cena onde os rapazes estão a reclamar que as meninas são muito conservadoras (que não deveriam usar o véu, por exemplo) e depois num outro momento, uma das meninas a reclamar que desejaria que um dos rapazes fosse mais conservador. Parece que está tentando dizer que os homens são também vítimas desse ambiente patriarcal…

Claro que eles são. Especialmente a geração mais jovem. Me parece que eles não escolheram todas aquelas regras ou mentalidades que têm que seguir para serem aceitos na comunidade, e eles sofrem com isso. Eles têm que desempenhar um papel constantemente. 

Li que Abdellatif Kechiche é uma grande referência para você. Eu queria perguntar quais são as outras referências e filmes para Under the Fig Trees e sobre o seu trabalho em geral.

Na verdade, eu não assisto a filmes durante o desenvolvimento dos meus filmes. Eu tento ficar muito conectado à minha história e ao ambiente que quero construir. Antes de Under The Fig Trees tive uma fase em que só assistia a nouvelle vague francesa como Rohmer, Truffaut… Também me inspirei no filme de estreia de Kechiche. E sempre segui o trabalho de Ken Loach, Hirokazu Kore-eda, Sofia Coppola, Asghar Farhadi, Maïwenn.

Uma última pergunta só a título de curiosidade, chegou a ver Alcarrás de Carla Simón que ganhou a Berlinale este ano? Me lembrou muito o seu filme. É também um ensemble piece numa aldeia rural da Catalunha com todas as histórias a girar em torno de uma família a fazer a colheita de pêssegos. Elenco também feito de não-atores, todos under the peach trees… Obviamente que a comparação é apenas uma coincidência, já que vocês duas provavelmente filmaram os filmes ao mesmo tempo…mas só para dizer que debaixo das árvores de frutos andam a acontecer muito bons filmes ultimamente.

Eu ouvi falar de Alcarrás depois que estreou na Berlinale, é uma coincidência incrível e mal posso esperar para assistir! Provavelmente sentimos a necessidade de ligações à terra, à natureza, à família e aos amigos. Na Tunísia rural existe uma ligação muito forte entre irmãs ou entre amigas, que é difícil de explicar. Eles existem todos juntos. E quando um deles vai embora, é difícil para quem fica. É lindo de assistir, mas parece que esse tipo de conexão está desaparecendo. 

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