“Uma Casa Feita de Farpas”, um dos documentários candidatos aos Óscares deste ano e vencedor do prémio para Melhor Realização em Sundance, em 2022, é também um retrato íntimo e assustador do efeito que o permanente estado de guerra na Ucrânia tem sobre as famílias mais carenciadas e os seus filhos.
“Uma Casa Feita de Farpas”, ao mesmo tempo que é um autêntico murro no estômago, representa um desassombrado olhar sobre as crianças que ficam à guarda de um abrigo temporário enquanto o seu destino se decide: será que os pais vão voltar por eles? Haverá algum familiar que os acolha, em vez dos pais? A adoção é uma opção para estes meninos e meninas?
No meio de um turbilhão de mudanças, dúvidas e traumas, a equipa que acolhe estas crianças surge como um grupo de super pessoas. Conseguem animá-los, mantê-los ativos, dar-lhes esperança, não deixar morrer o espírito para que conservem ainda um pouco da infância.
“Uma Casa Feita de Farpas” não é, apesar de tudo, um documento intrusivo da intimidade, pressente-se, aliás, um nível elevado de confiança entre a equipa de filmagens, as crianças e as funcionárias do abrigo. De outro modo, muitas das confidências que as crianças fazem sabendo estarem a ser filmadas não seria possível.
É, pois, reconfortante, no meio do caos e da angústia, que este seja, mais do um documentário, um porto seguro para quem nele é figurado. Não tem pejo em mostrar a realidade e as crianças são exímias na sua honestidade inocente e sem filtros quando se trata de descrever aquilo que sabem ser uma realidade familiar despedaçada.
Completamente cientes dos dilemas com que se encontram confrontadas, muitas vezes são mostradas com maior maturidade do que os adultos que as abandonaram, eles também, em certa medida, vítimas de um conflito que atirou muitos deles para o desemprego e, em consequência, para o abuso do álcool, para a violência doméstica, para a dependência nas suas mais variadas formas.
Uma realidade dilacerante para eles e para quem os vê, que não fiquem dúvidas em relação a isso – logicamente, “Uma Casa Feita de Farpas” não é um documentário feel good com finais felizes, muito pelo contrário.
Nele residem, contudo, finais felizes ou começos felizes ou estados intermédios de felicidade, pequenos momentos em que parece que o mundo exterior não existe e existem possibilidades num futuro próximo. Esta é uma sensação muito imediata e quando confrontados com a ideia de futuro, as crianças não sabem responder qual poderá ser – mas há essa esperança.
O trabalho das mulheres que cuidam das crianças é sobre humano, muito para lá do mero apoio logístico. São alguém que aconselha, que abraça, que chora com estas meninos e meninas, que sofre pelo seu destino e faz tudo para que estes possam ter escolhas com que se sintam confortáveis.
“Uma Casa Feita de Farpas” é um documento muito agridoce, mas tão necessário, pertinente e real, tanto mais quando se sabe qual é a cronologia e o espaço geográfico específico em que ocorre. Nesse momento, tornar-se-á ainda um pouco mais aterrador, especialmente porque não traz quaisquer respostas, apenas umas dezenas e dezenas de novas perguntas.
Tem a destreza prática e a sensibilidade próximas das mulheres que vemos a cuidar das crianças, algures entre o sentido de dever e pragmatismo e o instinto maternal que nelas está mais presente que nos próprios pais destes jovens.
“Uma Casa Feita de Farpas“ consegue algo de incrivelmente poderoso: filmar as crianças a serem elas próprias, mesmo que de vez em quando o traquinas Kolya espreite diretamente para a lente da câmara e se faça de forte quando está com os irmãos.
Existem inúmeros momentos em que parecem esquecer-se das filmagens, mas há um que ficou marcado profundamente na memória de quem escreve estas linhas: a pequenina Sasha a dar instruções à sua boneca nova que não percebe uma palavra, comportando-se erraticamente como uma pateta aos olhos da menina.
Aquela curta frustração concentrada numa tentativa de diálogo surdo entre dois mundos que não se conseguem entender é, talvez, um dos melhores descritivos do que representa este documentário. São muitos os mundos em conflito, mas no fim sempre serão muitas as tentativas de sarar e passar à frente.
Claramente, desenha na sua narrativa não apenas a inevitabilidade do presente, mas crente em que de entre os desastres de percurso a que estas crianças estão sujeitas há a necessidade de lhes manter viva a ilusão própria de serem crianças.
Pelo meio, claro, imiscuem-se os vestígios da imensa falta de amor na casa de família: uma brincadeira feita de porrada, a confidência de que as meninas bebem regularmente álcool, os vestígios de automutilação nos braços, entre outras marcas que teimam em se fazer mostrar.
Esse olhar, verdadeiro, é equilibrado com outros tantos momentos de doçura, sorrisos bonitos de quem ainda (felizmente) não os perdeu, o saber-se exatamente para onde se quer ir, com quem se está bem.
Até ao final, “Uma Casa Feita de Farpas“ será sempre esta mistura mais que justa, nem sempre fácil de encarar, de que o mundo não é só preto e branco e as áreas cinzentas são tantas que apenas o espírito aberto para o tão necessário amor pode salvar.