Há algo de absolutamente dantesco em “Vem e Vê”: a assunção da guerra como uma técnica pura. O seu jargão é simples: tratamento. A sua prática é clara: identificar, aglomerar, aniquilar.
Operática da morte, dos riscos sibilantes das balas, das piras acesas, é um filme do despojamento visual quanto o é de um barroco visceral. Se tem uma poesia do verde, na floresta e na relva, também tem uma aridez do horrendo na areia estéril e na planície acastanhada que o sangue turge.
É um filme para olhar e do olhar: o seu nome é chamar e pedir, rogar para que se olhe e veja, como pode ser que assim seja, que assim se possa fazer. As ideias de um porquê e de um perdão não o atravessam, antes o perpassam um pétreo desconforto e maleita, a de que o mal acontece, simplesmente porque acontece e enquanto tal acontecendo.
Se veiculamos um olhar pelos olhos de Flyora (Aleksey Kravchenko), se na sua face congelamos as rugas do atónito e do desfasamento atonal da incredulidade, também nele procuramos alguma réstia de inocência, uma que não se encontra, mas que se espera encontrar: é a crueldade vista, tão abominável que assim possa destruir a esperança de um breve fulgor de humanidade no que é, numa imagética clara, o rosto geometrizado e cru de quem vive a mais profunda inumanidade e mais selvagem horror?
Na corporalidade do inumano, está a ponta da espingarda, o fragor da chama e da gasolina, a absurdez de uma formulação mortal que não fornece razões, antes as ilude e desenha como discurso do vago e da lógica impune. São palavras que o soldado alemão diz: aquele que eles matam, assim têm que desaparecer, porque assim o prescreve uma frase e um amontoado de palavras – uma ideologia, se diga – um preceito, uma escrita que obriga a fazer.
É nessa tensão do discurso ideológico e da “forma-cinema” que Elem Klimov faz chocar olhar e olhares: tem que se ver a cinematização da morte, a forma imagética de um horrendo, a antecipação e visualização do mal que não para e não descansa, que sempre prossegue e avança, de terra queimada para outra terra queimada, de uma pilha de corpos fuzilados contra a parede de madeira de um casebre para uma outra – ainda maior – pilha de corpos queimados dentro de um celeiro.
Se Klimov filma a expansão e a linha do horizonte que perfazem um enorme círculo de 360 graus, é porque faz um cinema do espaço aberto, mas é um que não permite a evasão, regista o macroespaço do alastramento do mal e do sangue. A imensa planície da URSS, a grande planura bielorussa, é esse mapeamento de linhas da morte, são os pontos que se marcam para a aniquilação, são o estudo e a consequente técnica do exterminar, do fazer desaparecer, do retirar da memória. Burocracias e identificações, geometrias e destruições.
Os soldados alemães avançam tenuemente: são figuras fantasmáticas que se vetorizam através do nevoeiro. Dele surgem, pela calada madrugada, mecânicas e metais do assassínio e da obliteração. A cadência é brutal, porque processual: a recepção pelos habitantes, o ajuntamento dos corpos, o seu conduzir, o seu cercar, aglomerar e encerrar. As bocas gritam, os corpos ardem, o festim do absurdo. Fica o carvão, o cheiro da carne queimada, a terra enegrecida.
Do queimar escapa Flyora, a sua face empedernida e angular, “olho-gelo”, “mente-vazio”, “corpo-tensão”. Reagrupa-se com os partisans de quem se perdera, para ainda mais testemunhar a “palavra-política”, modo de engano, toma a primazia. Dos alemães vêm dois discursos antagónicos: o “lógico-militar”, do soldado que só cumpre as ordens, do comandante que ordenou, mas que foi ordenado superiormente, ele que só queria estar com os seus netos, mas que se viu obrigado a combater; no outro extremo, o fanático, do soldado certo de que os eslavos são seres inferiores e merecedores da sua exterminação. Aí assenta a última lição de Klimov: ao fim, são palavras, são discursos, ideias que são comunicações ideológicas e que ficam engrenhadas nas mentes e que corroem. São as “palavras-ordem” que justificam a matança indiscriminada e o assassínio como prática normativa e processo normalizado. Não ardem os alemães, são executados. Sangue por sangue. Técnicas diferentes. Morte por equivalência.
Flyora prossegue, tão oblíquo quanto anteriormente. Dispara contra o retrato de Hitler, caído na lama. Voraz, vingativo, odioso. Descarga imensa, explosão maquinal. O recuo, através das imagens de arquivo, fugindo à ficção e indo atrás da origem do mal é um ato de personalização autoral: é Klimov, o autor do filme, que cria uma montagem de imagéticas de Hitler, para perseguir a figura que quer acusar, Adolf Hitler. Ao chegar à fotografia do Hitler bebé, é aí que para, na “imagem-inocência” de quem veio a ser a “imagem-personificação” do Mal, Klimov acusa: é esta a criança que ordenou o extermínio de morfologias e etnias. Klimov mata Hitler? Flyora mata Hitler? Simbólica morte da sua imagem.
Na “imagética-choque” deste “Vem e Vê”, há pelo menos a formulação de uma tentativa de resgate da memória de todos aqueles que pereceram na loucura do extermínio por decreto ideológico. É um cinema da e para a memória. Para que nunca se esqueça. Para que sempre se recorde.