25 de Abril

Veneza 2023: “Quitter La Nuit” explora as dinâmicas entre vítima e agressor

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Um dos filmes mais tensos e inquietantes da 80ª edição de Veneza, a estreia da belga Delphine Girard explora as nuances e diversas formas que uma agressão sexual possa tomar. O filme elabora uma narrativa que é quase um jogo de espelhos, desafiando as suposições e intenções da sua própria audiência.

Os primeiros 20 minutos de Quitter La Nuit são um puro exercício de tensão. Encontramos uma mulher e um homem dentro de um carro, e um inquietante desconforto que paira no ar. Ela finge fazer uma ligação para sua irmã, mas na verdade está discretamente acionando a polícia, pois acredita que sua vida corre perigo. A conversa é habilmente codificada para evitar suspeitas por parte do homem ao seu lado, até que ele nota que algo está errado e reage.

O filme está em competição na seção paralela Giornate Degli Autori, uma espécie de Quinzena dos Realizadores de Veneza. É o filme de estreia da realizadora belga-canadiana Delphine Girard, cuja curta-metragem “A Sister”, foi indicado ao Oscar em 2020 para melhor curta.

Depois desses tensos 20 minutos dentro do carro, somos gradualmente conduzidos aos acontecimentos que o precederam. Após uma festa, Aly (Selma Alaoui) decide sair com Dary (Guillaume Duhesme), mas muda de ideia no meio do encontro, ainda dentro do carro dele. Contudo, a situação se transforma e o ato sexual ocorre. É então que Aly aciona a polícia, acusando Dary de agressão. Ele é preso preventivamente, mas alega que o ato foi consensual. Os detalhes da história permanecem obscuros e a verdadeira natureza do incidente incerta. Será que a agressão realmente aconteceu?

Girard deseja provocar e instigar sua audiência. Para isso, ela constrói uma narrativa poderosa e intrincada, explorando minuciosamente as nuances e complexidades que podem envolver uma agressão sexual. Aos poucos, os detalhes do incidente são revelados, e o filme examina questões complexas relacionadas ao consentimento e às áreas cinzentas dos encontros íntimos. Ao explorar a fronteira entre atos consensuais e não consensuais, apresentando a história de múltiplos pontos de vista, o filme cria um dilema moral cheio de paradoxos que leva o público a questionar suas próprias suposições.

Mas as contradições não param por aí. Exausta com o processo de investigação e as perguntas desconfiadas dos policiais, Aly decide não colaborar mais com a polícia e segue com sua vida, tentando não se deixar definir pelo o que lhe aconteceu. Porém, aos poucos vamos percebendo que ao reprimir as sequelas do trauma deixadas pela agressão, as coisas começam a piorar.

Numa cena perturbadora, meses após a suposta agressão, Aly encontra um estranho na rua, leva-o para casa e tenta provocar um estupro. Não podemos deixar de pensar em “Elle” de Paul Verhoeven. O filme ficou conhecido pela sua exploração audaciosa de uma agressão sexual, ao retratar a personagem de Isabelle Huppert, Michèle, navegando por uma série de emoções e dinâmicas de poder após ser estuprada. Michèle passa então a perseguir ativamente seu agressor, como se quisesse ser violada mais uma vez, confundindo os limites entre vítima e algoz. Verhoeven foi elogiado por investigar com maestria as complexidades psicológicas da personagem, mas também foi acusado de certa forma banalizar o estupro.

Numa entrevista de divulgação do filme a realizadora falou sobre “female gaze”. O conceito ganhou destaque nos últimos anos, suscitando diversas discussões e dando origem a diversos filmes como “Promising Young Woman” e até “Barbie” mas também onde o assunto é abordado diretamente, como em “Brainwashed: Sex-Camera-Power” o mais novo documentário de Nina Menkes, êxito em Sundance e na Berlinale, e que explorava como os realizadores homens filmam as mulheres – e os assuntos femininos, de forma diferente de uma realizadora.

Neste aspecto, Girard parece querer adicionar o seu ponto de vista à perspectiva tradicionalmente dominada pelos homens nos ecrãs. E “Through The Night” parece ser um exemplo de filme que explora esses temas sensíveis a partir da perspectiva de uma protagonista feminina, retratando sua luta e resiliência com profundidade e sensibilidade, escrito e realizador por uma mulher.

Se isso tudo faz sentido ou não, esse aspecto de sororidade do filme parece ganhar ainda mais força quando a história de uma terceira personagem começa a correr em paralelo à de Dary e Aly. É Anna (Veerle Baetens), a agente do call center que atende a ligação da polícia. Anna imediatamente se apega emocionalmente à história e começa a investigá-la, seguindo Aly e o caso no tribunal sem que seja notada. Até que um vínculo inesperado entre Aly e Anna se forma, em uma mistura de obsessão e desejo compartilhado por justiça, e as duas mulheres de diferentes origens seguem unidas em busca de um objetivo comum.

“Through The Night” é uma representação poderosa das dinâmicas entre vítima e agressor, explorando todas as nuances e complexidades que não podem ser facilmente percebidas à distância. Uma auspiciosa e promissora estreia na direção (e roteiro) e que coloca Delphine Girard firmemente sob o nosso radar.

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Veneza 2023: “Quitter La Nuit” explora as dinâmicas entre vítima e agressor
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