Há sempre um espaço de ausência que os corpos dos artistas deixam. Um espaço em que só as suas obras são as imagéticas de substituição e reconstituição desses outros espaços, os da criação e os da vivência como artes em potência tida. O céu sobre a terra que João Mário Grilo nos mostra é bem esse lugar da lonjura, onde esses dois corpos – Vieira e Arpad – se fizeram um só: vida e trabalho, companhia e continuidade, retiro e junção.
Dois mundos, duas extrações, dois traços, duas formas de planar o papel a tela. Quadrado e linha, saturação e contorno. O percorrer desses espaços feitos de pedra e campo, da planície que está fora dos circuitos, mas que é terra em que se vive, sebe que esconde e escada que leva ao lugar onde se cria, são os rios das viagens que só os artistas sabem cruzar, os da necessidade do silêncio, onde só se ouve o tocar e o deslizar do pincel sobre a tela, os passos breves e entrecortados, as paragens do olhar e as reflexões do espírito, a passagem do dia e o vogar da noite. Esse lugar é o atelier, oficina construtiva onde desaguam todas as demandas e rumos de quem, como Vieira e Arpad, se tiveram que fazer como o resultado dos modos e vicissitudes da vida, mas que ali sempre voltam, à oficina artística, sobre as mais diferentes formas e formulações, mas sobretudo se situando sob a claridade vinda da janela, a da luminosidade tão mediterrânea quanto tingida de uma certa temperança setentrional, a da sua radicação em França, esse tão seu (dos dois) corpo-espaço francês.
Um dos planos iniciais do filme, enquadrando parte daquela que foi a moradia do casal, coloca-se a si mesmo na curva que segue em direção da casa: a imagem encurva-se e enche o quadro, estendendo-o, pelo seu curvar, para lá das bordas da sua perspetiva. Não há mais nada do que a plasticidade de uma imagem que preenche o seu próprio espaço completo. A distância é reverente, não se assume como mostradora clara da necessidade biográfica e de localização fundamental – “está aqui a casa onde viveram Vieira e Arpad, Arpad e Vieira” – mas há antes o respeito de colocar o objecto de re-biografia (a câmara) na separação devida e construtora do olhar como um quadro de investigação dessa especialidade que se sente como urgindo uma visita, um calcorreio, uma apreensão. É tão só uma rua, uma curva, uma casa, mas é – essa sim – uma necessidade de redescoberta, não só dos passos que levam à porta, mas também das pedras percorridas e calcadas, e para lá delas, do sacrossanto – agora vazio e santificado – de uma intimidade e de uma vida artística a dois.
O cinema, arte de síntese, olhar sobre as artes que o antecederam, registo do respiro e dos atos destes dois artistas, tem na câmara – que se quer sem mácula, objetiva e certa da sua posição – um gesto de esperança, o de poder captar a força maior da presença que a ausência nunca deixa de manifestar. O que João Mário Grilo nos dá é a extensão desse espaço que já não está lá, em direção de um outro, contemporâneo e vivo, em que o tempo da memória, em função desse tempo-filme que a atualiza e reenquadra, faz desse espaço-ausência um espaço-tempo em que não só os atos e os corpos são retrazidos à memorização do presente, mas também um em que são retornadas as palavras, elas que são os fios de um tempo e dos tempos, das idas e vindas de uma vida conjunta.
O tempo deste filme – enquanto temporalidade do plano-quadro que toma o quadro-vida de Vieira e Arpad – é uma formulação da lisura, forma e modo que o atravessa, não se apressando, não fugindo, mas antes ficando, dando função e largura ao olhar que perscruta as especialidades físicas, mas também as gradações do um tempo de vida que levou o casal até geografias tão longínquas como a América do Sul e o Brasil. A cadência da câmara, o restar das suas contagens e ritmos de filmagem, é uma viagem sobre essas viagens, um filmar de céus sobre céus, diversos e diferentemente configurados, odores e chuvas outras, momentos da História onde a estória de Vieirarpad se foi fazendo e gizando. Esse tempo não fugidio é um que se remete para as imagens incrustadas de um beijo, de uma pose a dois no atelier, dos cabelos apartados ou soltos, mas também para outras formas de registo, nas quais só o tempo da voz dita e entoada pode fazer ressaltar a escrita tida das estórias das cartas-afeto trocadas. As palavras das cartas entre Arpad e Vieira são pois essas estórias de uma intimidade e de um amor que se fizeram e construíram como uma malha de signos e cruzamentos de anseios, saudades, interrogações e nomes só seus. Esse tempo maior, o tempo-amor, é aquele que o filme mais amplamente vinca, deixa claro e frutifica. O amor é essa coisa maior de uma vida a dois, a junção dos seus nomes num só signo, numa só palavra e significação, arte e vivência, vivência e arte, um caminho único.
A ausência nunca poderia ser mais do que a imanência da presença e o prosseguimento de uma inquebrantável conexão, não só dessas palavras que ficaram no papel, mas também das que ficaram na superfície do filme – o de José Álvaro Morais, Ma Femme Chamada Bichinho – arquivo de apropriação, memória de não-partição, mas sim de ligação. Do plano de João Mário Grilo, panorâmica longa, movimento demorado, translação sobre o que é agora quieto e que relembra, para uma conversa longínqua – plano de José Álvaro Morais – tida nos 70’s do século passado, em que a candura e a cumplicidade entre artista e artista, homem e mulher, são tão bem maiores do que o impossível que é a vida conjunta entre espíritos criadores. Sendo esse amor aquele que se faz e espraia para lá dessa sempre dita impossibilidade, é pois claro que o que o título do filme de João Mário Grilo embraça é a não destruição do legado de um nome composto mas unitário, como se fosse para todos claro que o amor à arte, por parte dos que a praticam é tão forte quanto sempre duplicado: é um amor a dois, feito um só.
As artes diferenciadas de Vieira e Arpad são e serão uma só, feitas dessa arte suprema e absoluta que é o amar quem se ama, com todas as palavras, em todas as cartas, em todos os caminhos.
© 2022 Luís Miguel Martins Miranda