A lógica de um cinema que é uma reflexão sobre essa mesma “lógica-cinema” é sempre um exercício e uma prática que remetem para a “figura-pessoa” do cineasta. A questão da autoria fílmica e, ainda mais importantemente, da autoria artística, põem-se de uma forma acutilante quando se está perante mais um filme de Pedro Costa.
Em Costa, a forma é fundamental: a forma do quadro, a forma do movimento, a forma do representar, a forma do “iluminar-pintar”, a forma do montar, a forma do sonorizar. A forma enquanto linha primacial de construção fílmica de um espaço em suspensão: o lugar da noite é esse espaço centrado que escapa à localização média e que se posta antes como localização pictórica de um quadro que, por sua vez, se arquiteta a partir do desenhar de uma textura e de uma gradação do escuro para o claro e deste novamente para o escuro.
Esse espaço é um “vetor-luz/vetor-sombra”, a partir do qual a imagética deste Vitalina Varela se assenta e formula, numa oposição pura e primeira – luz e vácuo, branco e preto, máximo e nulo – e através da qual as imagens se moldam a si mesmas e moldam as figuras pétreas que são as personagens que passam defronte das paredes rasgadas pela luz difusa e pela luz dura e que sob elas são suavizadas e enlevadas, marcadas e contrastadas. Elas, as personagens, são quietude e pensamento, refletem e falam para si, sempre definidas e energizadas pela luminância que as envolve no “intra-campo” e as separa forçosamente do fora de campo.
A mise en scène de Pedro Costa preconiza o imenso dentro de campo e afasta o “não-iluminado” fora de campo. A forma tendencialmente quadrada do seu cinema configura a permanência da composição interna como modo fundamental da sua montagem narrativa. Ao envolver Varela no formato quase quadrado e, além disso, ao rodeá-la com o círculo de luz difusa ou ao moldá-la com o rasgo cortante de luz dura, Costa efetivamente monta dois planos num só: o negro do luto e da mágoa da já idosa Vitalina e a claridade onde ela se pode expressar, aquietar, olhar, falar.
A reformulação do plano, nas metades ou quartos de si mesmo – materializam funções narrativas (o corpo, o olhar) e funções simbólicas (os objetos, as partes dos cenários) – preconiza e afirma o regresso ao pictórico da imagem: não só uma narratividade, mas também um valor estético da imagem enquanto pureza de si mesma. Não avança somente o ato de contar, mas também se assimila a premência do olhar e, ainda mais importantemente, a imperiosa necessidade de criar as imagens e a imagem.
Daí que, da mera encenação do quadro cinematográfico, se tenha de elevar a de Pedro Costa ao nível da encenação da imagem, uma que transcenda o que é a “lógica-cinema”. Este pintar, este esculpir de texturas – de paredes rugosas e sujas, de solos pejados de detritos, de tetos fumados e negros, de riscos e faixas, de escadas e corredores, “contra-corredores” e entradas, reentrâncias e caminhos – enformam um novo espaço imagético, um que é “plasticidade-cinema” sobre o “cinema-narração”, um “orgânico-imagem” que é soma constante de ambiências e atmosferas pictóricas e plásticas que organizam um olhar de fora para dentro.
O fora de campo de Pedro Costa se afasta, o dos lados do quadro, ele prefere antes convidar pelo lado do ecrã, da reentrância imagética: o plano só é plano quando olhado de fora, dado pelo cineasta e reconfigurado pelo seu olhar incógnito, aquele que nunca se vê, aquele que o faz do outro lado do véu diáfano deste outro cinema que é o de Costa. Vai ele e a sua mise en scène em busca de um novo cinema? Um que regresse à categoria da máxima autoria? Um que seja até um cinema do “não-género”? A depuração das suas imagens, a plasticização dos seus valores de luz e a texturização cénica e objetal afirmam a procura de um modo de filmar construtor e veiculador da imagem-tempo, a partir da qual se arquitetam as “imagens-corpo” e as “imagens-face” que formulam um cinema de momentos significantes, um cinema em que as faces são verdadeiramente master shots, que guiam em si mesmas e que avançam na necessidade de um tempo corrido e em passagem de si próprio, seguindo para o próximo “retrato-master-shot” e assim sucessivamente.
Nesta sua mise en scène tão própria, aquela que tem vindo a assumir para lá de Ossos, Costa foge cada vez mais ao género na sua forma geral – os seus dramas são filmados de forma absolutamente “anti-género” – mas não deixando de filmar num certo classicismo fordiano, pelo uso dos quadros prolongados e vertidos sobre a face ou o grupo de personagens. E faces como a de Vitalina e de Ventura, sendo pétreas, são também vivas e brilhantes. Vindas do escuro, fazem-se luz, pensando e falando, sentindo e olhando, gritando e caindo. Imagens de luz são, imagens na luz serão.