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“Viver Mal” – As Figuras dos Enganos

Viver Mal, de João Canijo Viver Mal, de João Canijo

Ao mesmo tempo que Piedade (Anabela Moreira) desvanecia, antes de se liquidificar e boiar, a claustrofobia aberta que prendia uma família feita de ressentimentos, sentimentos, acometimentos e partimentos, outras três famílias vivem mal, ali tão fechadas quanto a outra, estanques mas coligadas, os sons das suas conversas postos mais acima do registo normal, para que fossem ouvidas, não pelos que ali no hotel andavam, mas sim por quem João Canijo quis dar a ouvir: diálogos sobrepostos, sonoridades desfasadas do seu espaço planar, o aural fugido à imagem-plano, irradiações sonoras, inconfidências para lá do quadro. Aos que se poderiam ir embora, antes eles não quiseram ir, ali se quiseram fechar, porque o viver mal é um feito da pressão dos corpos que se juntam mas claramente se disjuntam (e para lá do cruzamento e do descruzamento). Mas é sempre a família que forma e conforma a maleita, é a família que, como geometria dessa pressão, nas figuras de cubos sufocantes e triângulos tóxicos – também elas (como as da outra) fundadas e construídas no sentir, ressentir, sobre-sentir e, em alguns casos, no sob-sentir – que mais se auto-implodem e autodestroem.

Primeiro cubo de pressão: Jaime (Nuno Lopes) e Camila (Filipa Areosa). Nos lados, acima e abaixo desse cubo, um mundo sem imagens, o nível do real que verdadeiramente não lhes interessa, já que eles vivem num entorno de criação de imagéticas falsas, feitas de poses retratais, momentos de imagificação e apagamento do que está antes e depois, a desavença constante. O que está para lá da imagem, a tirada e a modelada, não fica visto, nem até pressuposto. A verdade da inverdade. O cubo que os rodeia (fecha) e através do qual se fecham do real, encurva-se, na verdade é uma bolha de decepção (no duplo sentido de engano para com o outro e desilusão em relação ao outro). As imagens que Jaime tira e as imagens que Camila posa são as únicas (in)verdades que eles fazem e sabem fazer, são os registos do que já não existe, a sua relação. A mãe de Jaime (fora da bolha), ligada por telecomunicação, avisa: as imagens de Camila com outro, o que são? Só podem ser prelúdio de traição. E de conversa em conversa, de discussão em discussão, de negação em negação, de hipocrisia em hipocrisia (Jaime tem um muito breve encontro sexual com Raquel), o cubo-bolha rebenta: sim, ela já o traiu, já algumas vezes, com um seu amigo. Mas o outro não a vem buscar, já não a quer (é “incorreto” o que fizeram) e ela ali fica, no sítio claustrofóbico-aberto de onde só pode fugir se for com aquele que traiu e disse que traiu. No quarto, e depois do tudo dito, tudo se suspende para o tirar de uma outra fotografia e o fazer de uma outra pose, uma outra falsificação que se recorta de tudo o resto. Fica só a necessidade da imagem, da parte que nada tem a ver com o todo. No vácuo do sentir, fica a vacuidade da imagem-engano.

Seguem-se dois triângulos de toxicidade: vértices feitos de mães, forças desequilibradoras e até pérfidas. No primeiro, Elisa (Leonor Silveira) é amante de Alex (Rafael Morais), o marido da filha Graça (Lia Carvalho). As partes da equação são a lascívia e o dinheiro. Corpos que se querem ter e não se tendo, depressa se vai até outro quarto para se conseguir ter o toque da carne. Se de Graça não tem satisfação, Alex sabe que a vai ter junto de Elisa. Espelhos mútuas das suas vaidades, um e outro são função de uma iliquidez financeira que parece ser – por imagem – muito líquida, mas dessa só mesmo terá a água em que Alex se banha na piscina. Entre o puxar de cartões de crédito, o dinheiro já não parece abundar, nem mais disponível ele parecerá vir a estar, pelo que a relação assoma-se como fadada a se autodestruir, se mais depressa entre o mãe e o genro ou se entre a filha e o marido ou se entre todo o triângulo ao mesmo tempo. Numa família feita de traição em permanência, de todos os lados o mais fraco é aquele que mais candura parece ter, ainda que uma estranha candura, uma em que é a cegueira propositada – a de Graça – a única forma de poder prosseguir perante o óbvio. No fim, é ela quem paga a estadia de um fim de semana que foi, na verdade, a escapadela da mãe e do marido. Uns vivem mal para que outros possam fazer de conta que vivem bem. Mas são mais estes que, por ato e engano, tão vivem mal, na deslealdade e na mentira das boas aparências – a imagem externa que não corresponde à escondida realidade – que só maculam a bonomia dos imaculados enganados.

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No segundo triângulo assoma Judite (Beatriz Batarda), mãe possuidora e definidora de caminhos que pouco deixa de respiro à filha Júlia (Leonor Vasconcelos), já que a primeira sempre decide o que a segunda tem que fazer, desde o mais mundano dos atos a levar a cabo de seguida até às próprias decisões da sua putativa e futura carreira de atriz. Mas a família aqui ainda não está completamente formada, não há ainda compromisso contratual ou de vida, é a união factual que ainda poderá vir a ser que Judite quer preventivamente atacar e fazer terminar. O seu embate é com a namorada da filha, Alice (Carolina Amaral), a qual é outra força que tenta esmagar (forçar, tentar decidir por) Júlia. É a falta de espaço para o salutar oxigenar da vontade própria que se faz como um entrecortar de vozes que tentam fazer convencer, manipular, para levar ao separar. Acusações defronte, intrigas atrás da parede, presenças sempre desconfortáveis, ultimatos e arrependimentos, mudanças de humor, destruição de entendimentos, gritos chorados, choros gritados e tudo chega ao fim triste da finalidade sem sentido que mais não seja ter intrigado para que aquela pessoa tivesse feito o que se queria que ela fizesse, porque assim se havia decidido, apesar de ter apartado, apesar de ter enganado, apesar de ter destruído o que poderia ter vindo a ser uma outra família que substituiria aquela que foi o objeto de um sacrifício de vida para o construir de uma planificação de como a sua filha haveria de viver a sua. No seu fim, seguem no mesmo carro. De outra forma, não o poderiam fazer. Juntas mas separadas. Mal postas umas com as outras, vividas tão mal como podem viver quem, tendo vantagem financeira, o usa para desbaratar o que de positivo o amor – filial ou romântico – possa trazer. Canijo assim as deixa ir – tal como os outros que ali estiveram – a viver tão mal quanto já o faziam antes de ali chegar, talvez um pouco menos do que ficarão depois de ali sair.

Nas figuras dos enganos, entre cubos arredondados e triângulos aguçados, a amostragem é clara: a família como a sua própria insidia e a potência do seu próprio falso. Que negrume. Que falta de esperança. Que se pensasse que aquela que já ali estava, no hotel, era a que tão mal vivia. Pois estas que lá foram eram, na verdade, as que de mal a pior vivem.