O documentário de Fernanda Pessoa, “Zona Árida”, expressa um ponto de vista pessoal sobre um ano de intercâmbio escolar que a realizadora fez em Mesa, uma cidade dos EUA, no estado do Arizona. A narrativa do documentário é feita pela voz de Fernanda Pessoa, que regressa a Mesa, volvidos 15 anos, para dialogar com o seu eu do passado.
A realizadora volta a Mesa para entrevistar as pessoas que conheceu durante o seu intercâmbio para reflectir sobre aquilo que terá, ou não, mudado, após os seus os 15 anos que passaram. Da distância temporal que existe no seu diálogo consigo mesma, constata uma mesmidade cultural, em que o tempo parece ter estagnado, naquela que é considerada a cidade mais conservadora dos EUA.
Um certo estado (natural) de inocência dos seus 15 anos de idade, associado a uma visão cultural comum no Brasil sobre os EUA – em que o país aparece, pelo cinema de Hollywood, como terra dos sonhos, da liberdade e das oportunidades – ajudou a criar, dentro de si, um desejo de pertença cultural pouco amadurecido. E este é um dos pontos fortes do documentário: a força reflexiva que é criada pela distância entre um desejo pouco reflectido de uma idade inocente e a maior racionalidade da maturidade adulta. O que se descobre nesta distância é que a própria cultura dos EUA se adequa a um estado de inocência espiritual permanente. O conservadorismo que se manifesta em Mesa é o fascínio absoluto americano pela arma, pelo manuseamento da arma, pelo disparo da arma, que possui a mesma alegria inocente com que a criança dispara a sua arma de brincar
Esta cultura da inocência talvez se traduza, na filosofia de Jean Baudrillard, como necessidade de criar, por cima do solo árido, uma segunda realidade que esconda a primeira. Uma cultura que nasce do simulacro do seu mito fundador, onde o Outro – real – é subjugado à força dessa crença num direito territorial, divinamente legado. A cultura do Oeste Selvagem, a imagem do cowboy e da arma como parte essencial da sua ética, são símbolos que remetem, automaticamente, para uma visão do Outro como forasteiro, como usurpador, como alvo a abater. Os EUA necessitaram deste simulacro, deste conjunto de imagens e símbolos para se afirmarem como nação. A presença destes elementos simbólicos, representam uma cultura da inocência que se manifesta numa ética hostil para com o Outro, daí, Fernanda Pessoa, através da sua experiência pessoal, conseguir trazer para o seu filme as questões sobre a emigração e o convívio, sempre crispado, com o imigrante mexicano.
Contudo, na voz da realizadora ressoam muitas outras, a de todos aqueles que emigram e contactam com a parte politicamente árida de outros países. Os EUA não são o único país cujas transcendências nacionalistas e os seus mitos fundadores criaram uma ética imunológica em relação ao Outro. A voz de Fernanda Pessoa, embora singular, tem o poder de reavivar as feridas de todos os migrantes que encontram terreno árido no país de chegada. Toda a nação possui essa força animal primitiva de justificar o fluir do seu ódio com uma panóplia de transcendências à sua disposição. É esse um dos sentidos possíveis do simulacro. É aquilo que faz parecer que o específico humano é criar uma intensa fábrica de abstracções que lhe permitam continuar a garantir o fluir da sua crueldade; e que esta se efective socialmente, rodeada do sempre bem-cheiroso perfume moral e religioso. Não é por acaso que, num dado momento do documentário, ouvimos o tão amado cliché conservador: o politicamente correcto está a acabar com a liberdade de expressão.
Em termos formais, o documentário de Fernanda Pessoa vai buscar a sua unidade ao relato narrativo feito pela sua voz. O salto temporal é feito através de fotografias da época em que a realizador viveu em Mesa, que são contrastadas com o presente das entrevistas às pessoas que aí conheceu. A narrativa é intervalada com planos das paisagens de Mesa, que remetem para a terra agreste e seca, que preencheu tantas películas do género Western Americano. A subjectividade autodialogante do filme expõem o seu natural sentido narrativo, visando contar-nos uma história pessoal, com uma economia formal simples. O fluir da narrativa é suficientemente limpo e coeso para nos captar a atenção durante todo o filme.
Se o cinema pode ser considerado um simulacro enquanto dispositivo que cria uma tessitura imagética que se coloca por cima do real, possuindo a capacidade de nos alienar, penetrando a nossa alma para nela injectar uma perfusão de crenças, também pode ser um meio eficaz de virar as abstracções do avesso e apresentar-nos o próprio real como potência e ficção. E, talvez o cinema seja a arma mais letal contra o conservadorismo, uma vez que as imagens em movimento, que se nos apresentam na tela, são já devir em acção, fluir e transformação.