“A Vida Luminosa”: Um (belo) conto de Primavera

"A Vida Luminosa" (2025) de João Rosas "A Vida Luminosa" (2025) de João Rosas
"A Vida Luminosa" (2025) de João Rosas

Depois das três curtas, João Rosas entrega a longa. Aí está “A Vida Luminosa”. No fundo, uma continuidade que é muito mais que a presente recorrente de Francisco Melo. É a simplicidade vista pela luz do cinema.

Numa altura em que vêm à tona novas dúvidas sobre os passos titubeantes do nosso ‘cinema nacional’ e quando se exalta a afetividade das imagens com o público, com os críticos, os festivais, os programadores, os exibidores – eu sei lá -, vale a pena reparar em “A Vida Luminosa” e perceber como o cinema do João Rosas se está marimbar com esse ponto de vista ontológico, concentrando-se em devolver-nos um filme belíssimo. Apetece até dizer, em surdina, ‘por esta porta o cinema pode entrar’! E se o título até remeter (e bem) para uma afinidade rohmereana, não é por aí que o gato vai às filhoses. Há algo nessa partilha estival, nos espaços, nas conversas, nos amores que lhe fica muito bem e não carece de dívida.

“A Vida Luminosa” dá-nos então a ‘luz’, mas que não nos ‘ilumina’. Deseja antes passear connosco nas ruas de Lisboa, seguir mapas de geografia humana, arriscar no olhar dos outros e deixar-se levar por um sorriso. Em suma, sentir algo que que nos seja próximo. Apesar de todas as indecisões, de todas as dúvidas. Pois é isso que alimenta a narrativa, o embaraço do desejo, a paixão, vá se lá saber.

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Um aviso à navegação: assumi que vi (e revi) as curtas do João Rosas antes da longa. Pois não conhecia ainda aquele primeiro olhar sobre a cidade, em “Entretcampos” (2013), faltava-me testemunhar o desejo corporal de “Maria do Mar” (2015), tal como aceitação da hesitação em “Catavento” (2020). E tornou-se até ponto assente de rever o filme, já depois da conversa com o João Rosas. A ideia não era simplesmente recuperar o mesmo Francisco Melo, com um certo ‘je ne sais quoi’ de Melvil Poupaud (por exemplo, em Conto de Verão, do Rohmer), depois dos 14-15 anos de rodagem, mas seguramente mais pelo gesto de cinema que se molda a partir de personagens, sem uma agenda definida para nos seduzir; antes inscrevendo-se nos lugares comuns de rodas de amigos e (tão bem) filmado no exterior ou em transportes públicos. Pois é nesses espaços que certas frases se dizem e têm o seu peso. E que uma câmara, quase sempre impercetível, ou com milimétricos movimentos, as testemunha, embora deixando todo o espaço para o acontecer. E olhem que não é pouco. Talvez porque fique (sempre!) no ar algo que nos faz querer manter a viagem.

Ah sim, o filme. O filme é sempre o Nicolau (Francisco Melo). Ou quase (como a sua banda Quase Nicolau). Esse garoto tornado jovem que não chegou a encontrar as certezas da vida. Vai então alimentando-se de incertezas (como tantos) e no poder do olhar. É a partir daqui e dos longos encontros com os atores que se vai escrevendo, como sublinha João Rosas na nossa entrevista. Parece fácil. Mas este é apenas o esquema (o mapa) de orientação para um filme que dança à nossa volta. Por sinal, filmado há exatamente dois anos, durante os santos populares, numa Lisboa vibrante e que apetece viver.

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“A Vida Luminosa” (2025) de João Rosas

No fundo mais um elemento de proximidade a uma realidade que é, sim senhor, muito filmável. E que faz um vaivém curioso com os outros filmes, que depois queremos revisitar. Seja para reparar na t-shirt que transita de um filme para o outro ou o cartaz do David Bowie que regressa a casa.

É então a partir dessa massa que se molda a continuação da história de Nicolau, agora a viver em casa dos pais – (o contrabaixista Bernardo Moreira e a cineasta Catarina Mourão), eles próprios com o seu imbróglio afetivo – na mó de baixo e sem grandes planos para o futuro, temperando relacionamentos inacabados com a “ressaca de um ano do último amor”. É isso que Nicolau vai confidenciando no ombro de Francisca (desde Entrecampos), acabando por se incapaz de reagir a todas as mulheres que dele se aproximam. E que cujos nomes têm de ser mencionados: são elas Cécile Matignon, Margarida Dias, Federica Balbi, Gemma Tria, Ângela Ramos e Francisca Alarcão. E talvez aqui até falte alguma ocasional… Ainda assim, Nicolau foge para a frente, navegando na tal dúvida anunciada na canção de abertura: “de todas as coisas, a mais certa, e sabida, é a dúvida”!

De qualquer forma, “A Vida Luminosa” (tal como todas as curtas) é também o João Rosas. Pela cumplicidade, pela projeção dos desejos e paixões. E tão bonita é a sequência na Cinemateca, com o grupo de amigos a ver “Marcha Nupcial”, do Erich von Stroheim (1922), aliando a cinefilia ao olhar das personagens. Ou à história que cada um tiver (ou não). Talvez seja também essa a luz de que fala o título. A luz do cinema.

Ora, no meio deste percurso indeciso, Nicolau ainda contará bicicletas e acabará até por trabalhar numa papelaria e vestir-se de Pai natal. No primeiro dia de trabalho, o gerente ajuda-o com algumas dicas e ao primeiro cliente (o baterista Luís San Payo, ex-Croix Sainte) pedindo que avalie a sua compra (de 1 a 5). ‘Dou cinco’, é a resposta pronta. ‘Tanto?’, questiona o gerente. ‘Então dou zero’. E vai-se embora. Pois bem, então também dou cinco. Seguramente, não com a mesma leveza e humor, mas por tudo o que foi dito. E porque este belo conto luminoso bate certo em todas as notas. Mesmo sem desejar ser obra-prima.

"A Vida Luminosa" (2025) de João Rosas
“A Vida Luminosa”: Um (belo) conto de Primavera
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