Imaginar é um ato de desenvoltura, de criação de um mundo que só pode ser sentido por quem o faz e partilhado com quem o possa entender e também refazer, ainda mais poético e mais perto de um momento de comunhão, de pensamento e de suspiro pelo que é, ao olho e ao coração, belo e puro. A criança que imagina faz exatamente isso, cria um estado de ser e de ver que é só seu, de razões só suas, e que só esse mesmo estado-de-imaginação-em-ato resgatam e validam. A criança cria, imagina, fomenta, torna possível, por vontade e ação, a mais crua e enlevante das magias e dos medos, com igual força, com idêntica potência, com plena auto-verdade. No dirimir dessas duas extremidades – entre o mais positivo e o mais negativo – a mente criadora e imaginadora da criança recria o mais profundo dos mundos: o da auto-positividade, para lá de qualquer negação, apesar de qualquer entorno dificultador, porque ela acredita que tudo pode ser simplesmente verdadeiro e belo em si, momento ou ato, estado ou vontade, amizade ou ódio, desamor ou amor. A criança é e será sempre a potência de tudo quanto a vida e o mundo podem ser e é esse o pré-tema de que Manoel de Oliveira parte neste seu “Aniki Bóbó”, e daí refletindo sobre as potências imaginantes do sonho (nas suas duplicidades de desejo positivo e medo negativo) e as potências tornadas reais pela existência na coisas e atos da vida.
O sonho: Carlitos (Horácio Silva) dorme bem pois dorme demais, sonha de olhos fechados e sonha de olhos abertos, sorri de malícia, mas dela não tem nenhuma, somente é assim, forma de alegria, criança a crescer, não chega nem cedo nem tarde à escola, vai lá porque tem que ir, o que vale é estar lá pelo que lá se pode fazer depois de lá se estar. Vale pela camaradagem e pela amizade de um grupo enérgico que corre as ruas do Porto, que salta os seus altos e baixos, que curva as suas retangularidades, que se aprofunda nas águas do Rio Douro, que torpedeia e persegue, de “polícia e ladrão” feito, pelas vielas expressionistas e de sombras noturnas e duras, brincadeira a fazer-de-conta que se é grande – porque inevitavelmente o terão que ser um dia – travessos e gozões, com risos e gargalhadas, mas também capazes de olhar para o céu e orarem um desejo de melhoras a quem padece, poesia inversa, que quem é pequeno não parece ser capaz de aspirar a um registo do divino de uma forma tão simples e precisa, mas assim o fazem, com a fé de quem acredita com o coração e acredita com a bondade jamais falsa. Como os seus amigos, instados em momento de divina e astral clarividência, e que muito assim ensinariam a um adulto, olhar o céu é o que Carlitos sempre faz, e tanto ele olha para cima, pois está sempre a imaginar-sonhar o que lhe possa vir a acontecer (seja bom ou seja mau) e claro é que o seu maior sonho-em-imaginação é o amor que nutre por Teresinha (Fernanda Matos). Ainda que se possa indagar o que diferencia o amor que se sente enquanto criança e o amor que se experiencia como adulto, não há dúvida que o ligeiro torcer de cabeça e o sorriso que se desenha em curva quando ele a vê, são claramente indicativos de que o “gosto de ti” de Carlitos em relação a Teresinha é palpitantemente verdadeiro. Como quem ama, ele sonha estar com ela, quer que ela passeie com ele, vê-a nos seus pensamentos, cogita-sonha-imagina as imagens de como há-de estar com ela e de como poderá lhe agradar e fazer com que ela se agrade dele. Amar é, como sempre, sonhar ser amado. Mas o sonho de amar Teresinha tem o seu lado e reverso negro: as imagens do sonho negativo, o Eduardinho (António Santos) a gargalhar diabolicamente, atrás das chamas que mais nada podem ser do que o mal mais intenso, ele que é a sua antítese – realista, mais atirado, com músculo, beiçudo, dado à bulha e à força – mas que é o seu espelho natural, já que quem ama e disputa o amor duma mesma pessoa, tem sempre na igualdade de estratégias, por mais díspares, corretas ou incorretas, dignas ou indignas que sejam, pretendem o mesmo fim de assim conseguir a vitória da conquista de um amor de que acham serem os únicos e justos receptores. Mais sonha ainda Carlitos o medo e as consequências dos seus atos que por amor são levados a cabo, e aí ele já não fecha os olhos, o terror é muito grande, é com o olhar esbugalhado que ele olha para o futuro possivelmente negro e só pode com ele e através dele tremer. Do sonho belo ao terrorífico pesadelo, esse é o caminho que todos os sonhadores têm que percorrer, pois quem sonha imagina, e quem imagina tem que, acima de tudo, e para além do sonhar, viver e aprender.
A vida: este “Aniki Bóbó” funda-se numa poética da urbanidade que nunca parece pobre – apesar do seu “setting” se situar no entorno da classe trabalhadora e popular – nunca ele se parece se passar na pobreza ou em pobreza, mas antes na riqueza de uma vida-em-realidade, em que as dificuldades não surgem manifestadas de forma expressa, e não as mostrar parece claramente ser o objetivo de Oliveira, já que a sua prece e ensejo fílmico é antes o filmar a poesia-do-real-da-vida, tão mágica quanto agreste, porque as ruas são feitas de pedra, as casas são humildes, mas os risos e os cantares são profundamente alegres, as mães gritam com os filhos, mas nunca o seu amor se põe em causa. Talvez seja o sol que sempre brilha, talvez seja a claridade dos dias. Ou as crianças a serem como adultos. Porque o sonho leva a atos na vida. Que nem sempre acontecem como se sonha. Se Carlitos sonha que Teresinha o ame, e ela tanto quer a boneca, é claro que o sonhador terá o ato irrefletido de a roubar para a dar a quem ele ama. Se Carlitos tanto vê em Eduardinho a imagem do seu negativo – e vice-versa – é claro que a sua rivalidade e o decorrer dos acontecimentos levam ao acidente grave e ao mal-entendido que quase destrói a força viva daquele que mais sonha e que o impelem para uma fuga impossível. O cinema não é para tais coisas, pelo menos neste Oliveira, é antes para a mais absoluta das poesias que tanto ensinam ao mundo contemporâneo: aquele que tudo vê e tudo pode explicar é o Lojista (Nascimento Fernandes), precisamente aquele a quem a boneca foi roubada, e que tudo também perdoa e também tudo traz à verdade, pois Carlitos não empurrou Eduardinho, e o que foi dado irregularmente a Teresinha, ele dará então de vez. Tudo fica e ficará bem. Porque às vezes é bom e belo que a vida se pareça com um sonho.

