Desde que a Academia Brasileira anunciou os seis filmes pré-selecionados para representar o país no Oscar de 2026, a bolha cinéfila entrou em ebulição. Da lista final, três filmes – Baby, de Marcelo Caetano, Kasa Branca, de Luciano Vidigal, e Oeste Outra Vez, de Erico Rassi – pouco foram discutidos para além do protocolo simbólico. Apesar de serem ótimos filmes, figuravam na lista mais como gestos corteses do que como candidatos com impacto real na escolha final. A atenção de fato ficou então nos outros três restantes: O Último Azul, de Gabriel Mascaro, Manas, de Marianna Brennand, e O Agente Secreto, de Kléber Mendonça Filho.
Todos chegavam da Europa com prêmios importantes e reconhecimento internacional, mas, em vez dessa safra inédita ser celebrada como sinal de vigor do cinema brasileiro, acabou sendo convertida em combustível para uma disputa marcada por rivalidades artísticas, fraturas políticas e, obviamente, hostilidades virtuais.
O Último Azul saiu imenso de Berlim com o Urso de Prata nas mãos (inclusive chegou a liderar a preferência dos críticos do nosso jury grid este ano), enquanto Manas que tinha estreado em Veneza exatamente no mesmo ano de Ainda Estou Aqui, saiu de lá com o prêmio máximo da paralela Giornate degli Autori. Já O Agente Secreto desembarcava de Cannes cheio de pompa, com prêmios de melhor direção para Kléber e de melhor ator para Wagner Moura, para além de outros dois, incluindo o da Fipresci. O movimento seguinte foi ainda mais decisivo: a Neon — que nos últimos anos tem se gabado de adquirir todos os vencedores da Palma de Ouro, incluindo o vencedor do Oscar deste ano, Anora — garantiu a distribuição do filme para o mercado norte-americano.
À primeira vista, a matemática parecia simples: Kléber Mendonça Filho, com prestígio, currículo e aplausos da crítica, seria o favorito incontestável. No entanto, se olharmos para a história dos filmes que são escolhidos como representantes pelos seus países, ela nem sempre é assim tão previsível. Quem não se lembra do imbróglio que a academia francesa se meteu recentemente ao escolher O Sabor da Vida de Trần Anh Hùng ao invés do favorito Anatomia de uma Queda? Ou quando a Índia ignorou Tudo Que Imaginamos Como Luz, que saiu de Cannes com o segundo prêmio nas mãos, dado pelo júri de Greta Gerwig, por não ser considerado “suficientemente indiano”?

Nossa academia também coleciona suas rixas. Em 2016, o favorito Aquarius foi preterido em favor de Pequeno Segredo, o filme autobiográfico de David Schürmann que praticamente desapareceu do imaginário cinéfilo brasileiro. Para quem não se lembra, na época da estreia de Aquarius em Cannes, Kléber e o seu elenco denunciavam o golpe que derrubou Dilma Rousseff, segurando placas de protesto nas escadarias do Palais, em fotos que rodaram o mundo. Naquele momento, Michel Temer era presidente do Brasil e o gesto de Kléber marcou uma tensão que até hoje reverbera na memória cinéfila; uma lembrança que voltou a circular nas redes assim que surgiram rumores de que a escolha de O Agente Secreto não seria tão certa quanto parecia.
De azarão à forte candidato
No meio desse impasse, Manas começou a crescer e ganhar força. O filme de Marianna Brennand tem como seu tema principal a violência sexual contra meninas na Ilha do Marajó, um tema muito caro para o Brasil, e que encontrou renovada ressonância no debate cultural e social do país; especialmente nas últimas semanas quando a pauta do abuso sexual infantil ganhou destaque nacional após o influencer Felca publicar o vídeo Adultização, assistido por mais de 50 milhões de pessoas. A relevância do tema só foi reforçada pelo sucesso recente da série Pssica, de Fernando Meirelles e Bráulio Mantovani, na Netflix, que aborda o tráfico de meninas para exploração sexual na mesma região onde a história de Manas se passa. Dentro desse contexto, o filme de Brennand passou a adquirir uma dimensão de urgência ainda mais forte e se tornou num manifesto social capaz de provocar mobilização.
Brennand passou meses promovendo o filme, apresentando-o a nomes importantes da indústria e por fim conquistando o apoio do ator norte-americano Sean Penn, que logo entrou como produtor executivo e se tornou embaixador do projeto nos Estados Unidos. De azarão, Manas tornava-se numa alternativa real e estratégica, mostrando que a narrativa dominante da bolha cinéfila — de que apenas O Agente Secreto tinha chances reais — estava prestes a estourar.
Foi então que as redes sociais, em especial o X, se transformaram num palco de disputas e o debate ganhou ares de linchamento digital. Qualquer crítica à hegemonia de Kléber era imediatamente descartada com truculência e rotulada como traição ou burrice. Quando, na última sexta-feira, Fernanda Torres publicou um vídeo em apoio à campanha de Manas, a postagem foi interpretada por muitos como um gesto de sabotagem contra o filme de Kléber, e a atriz acabou sendo alvo de uma enxurrada de ataques. Pressionada, ela limitou os comentários das suas postagens e, pouco depois, tentou apaziguar os ânimos divulgando material sobre os outros cinco concorrentes. O ambiente já estava mais que inflamado quando surgiu uma carta aberta assinada por cerca de 70 empresas em defesa da indicação de Manas, que justificavam o gesto como forma de reforçar o combate à violência sexual infantil.
Rapidamente, algumas das empresas listadas na carta passaram a ser escrutinadas, com associações políticas do passado expostas em tweets raivosos. O nome de Luciana Temer, filha do ex-presidente Michel Temer e atual presidente do Instituto Liberta, tornou-se o principal alvo dos ataques e foi utilizado para deslegitimar toda a iniciativa. Assim como na “guerra” entre Ainda Estou Aqui e Emilia Perez no ano passado, o episódio revelou mais uma vez a natureza tóxica e contraditória da bolha cinéfila brasileira. Ao mesmo tempo que se coloca como guardiã de causas progressistas, recorre ao mesmo espírito inquisitorial que costuma denunciar nos outros. Em vez de fomentar o debate, acaba reproduzindo a lógica de uma patrulha ideológica, quase sempre reacionária e pouco aberta a discordâncias, transformando esse espaço numa verdadeira câmara de eco.
Um detalhe curioso, e talvez mais revelador, é que grande parte dessa militância apaixonada sequer viu O Agente Secreto, cuja estreia no Brasil só acontecerá em 6 de novembro. A defesa do filme, ancorada sobretudo nas previsões da revista americana Variety e nos prêmios conquistados em Cannes, parece menos ligada à obra em si e mais ao lugar simbólico que Kléber Mendonça Filho ocupa no imaginário do “cineasta de prestígio”.
Críticos brasileiros, por sua vez, reforçaram esse coro. Lucas Salgado, no Globo, foi taxativo: “qualquer escolha que não seja a de O Agente Secreto para representar o Brasil no Oscar me parece um erro”. Pablo Villaça, em seu Substack, argumentou que os filmes precisam circular no imaginário dos votantes da Academia antes mesmo de serem exibidos “se a primeira vez que os votantes da Academia ouvirem falar de um longa for em sua sessão de estreia, a disputa já está perdida”. Uma observação pertinente, e talvez o argumento mais forte a favor de Kléber; embora o histórico do Oscar mostre que surpresas sempre podem acontecer. Basta lembrar de Tanna (2015), o pequeno filme australiano sobre dois membros de uma tribo indígena que desafiavam as tradições do casamento arranjado através de um romance proibido, que estava completamente fora do radar das previsões, e que acabou conquistando a primeira indicação da Austrália na categoria de filme internacional, surpreendendo a todos.
O que quer o Oscar?
Mas se a crítica nacional parece convencida, o Oscar obedece a uma lógica muito própria. O Agente Secreto, embora favorito em prestígio, não é necessariamente o título mais estratégico quando se observa a história da categoria de filme internacional. A obra de Kléber é cerebral, complexa, de um ritmo muito peculiar, feita de camadas que dificilmente se revelam em uma única sessão. São qualidades que deslumbram críticos, mas que podem se converter em barreiras para um eleitorado obrigado a digerir dezenas de produções estrangeiras em poucas semanas.
Nesse contraste, Manas e até mesmo O Último Azul parecem oferecer uma vantagem mais competitiva. Ambos combinam clareza narrativa e impacto emocional mais imediato. Manas, em particular, conquistou defensores por ser legível, “urgente” e facilmente resumido em uma causa social — algo que a Academia americana historicamente valoriza.
Um exemplo recente é o devastador To Kill a Tiger (2024), que acompanhava a luta de um pai na Índia para levar à justiça os responsáveis pelo estupro de sua filha, num país com altas taxas de violência sexual, onde esses crimes muitas vezes não são levados a sério e as vítimas frequentemente culpabilizadas. Um cenário que infelizmente ecoa de certo modo a realidade brasileira, mas especialmente a da Ilha do Marajó. O filme chegou discretamente aos festivais, e foi ganhando força pelo boca a boca até conquistar, por fim, uma indicação ao Oscar no ano passado.
Esse tipo de urgência moral transforma uma obra em um ativo poderoso dentro do ecossistema da Academy of Motion Picture. A questão central, portanto, não é qual filme representa melhor o Brasil, mas qual deles tem mais chances de sobreviver ao mecanismo do Oscar, que frequentemente prioriza obras capazes de expor injustiças sociais.
Uma escolha de Sofia
É também importante lembrar que a Academia americana não é feita de críticos da Variety ou de jurados de Cannes, mas de milhares de profissionais da indústria: editores, figurinistas, atores aposentados, diretores que veem meia dúzia de produções estrangeiras por ano, e que muitas vezes nem sequer assistem a todos os indicados, como se soube no ano passado. Para esse público, histórias diretas e de impacto emocional imediato tendem a funcionar melhor.
É aí que O Agente Secreto encontra sua desvantagem estrutural. Sua sofisticação formal e densidade temática encantam festivais, mas podem alienar um eleitorado pouco disposto a decifrar camadas. Já Manas e O Último Azul oferecem uma solução intermediária: preservam um verniz autoral sem perder a capacidade de mobilizar o espectador de forma direta. São filmes que se deixam digerir com mais facilidade, sem exigir um mergulho hermenêutico do qual muitos votantes não dispõem de tempo ou disposição.
A ironia é amarga: o cinema brasileiro pode ter, neste momento, um dos filmes mais celebrados do ano (O Agente Secreto), mas talvez precise optar por algo mais palatável para ter chances reais de figurar entre os indicados ao Oscar. Não é questão de subestimar os votantes da Academia, mas de entender a lógica do jogo. No xadrez da indústria cultural, complexidade muitas vezes é sinônimo de risco.
Seja qual for a decisão na segunda-feira, a comissão já sabe que pagará o preço. Se rejeitar Kléber, será acusada de covarde e de trabalhar para boicotá-lo sucessivamente; se escolher Manas, ouvirá que não compreendeu o momento atual ou que cedeu a interesses corporativos. Não há vitória possível, apenas perdas a administrar.
Em última análise, a verdadeira “escolha de Sofia” da Academia será decidir entre o prestígio consolidado de um autor e a força simbólica de uma causa, sabendo que qualquer decisão será lida como suspeita, instantaneamente interpretada à luz de interesses e expectativas externas. Num momento em que qualquer consenso parece conquistado a duras penas, a unanimidade, felizmente, ainda se mantém para além do alcance.


