“No Romper da Luz” – O minimalismo aplicado à dor

“No Romper da Luz” é um desses poucos filmes que vive tanto da imaginação que corre o risco de perder o seu espectador
"No Romper da Luz", de Rúnar Rúnarsson "No Romper da Luz", de Rúnar Rúnarsson

O mais recente filme de Rúnar Rúnarsson, “No Romper da Luz”, debate-se com um tema complexo, mas filma-o de uma forma tão simples que quase se lhe perde o sentimento ou o pulso.

O argumento gira em torno de Una (Elín Hall) e da perda que sofre quando Diddi (Baldur Einarsson), o seu namorado em segredo, morre num terrível acidente de viação.

O segredo reside no facto de que Diddi namorava oficialmente com outra rapariga, Klara (Katla Njálsdóttir), e, portanto, ambas as jovens mulheres entrarão no seu processo de luto ao mesmo tempo. Una é estudante de artes e pouco mais se sabe sobre ela ou qualquer um dos seus amigos, isso simplesmente não é explorado no filme e não é, de todo, o seu foco.

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Depreende-se que essa informação seria uma distração do essencial. Quando Klara chega ao grupo, vinda de fora da cidade para chorar a perda de Diddi, também muito pouco sobre ela se fica a saber.

“No Romper da Luz” vive sobretudo da enorme interpretação que Elín Hall imprime à sua personagem. O realizador compraz-se nos grandes planos da cara de Una, nas suas intensidade e expressividade, sem grandes diálogos ou explicações, apoiando-se muitas vezes apenas na sua enigmática, mas eficaz banda sonora.

A banda sonora, aliás, é quase tão comovente como o filme e a imensa angústia que encerra. É sobretudo uma faixa em particular, Odi et Amo, que se ouve de modo mais persistente, da autoria do malogrado compositor islandês Jóhann Jóhannsson.

“No Romper da Luz” tem lugar entre um por de sol e outro, um dia completo. Entre um e outro momento, o que se encontrava na sombra é levado obrigatoriamente para a luz do dia. Dir-se-ia que arrancado dessa sombra à força e obrigado a ser conhecido. Nesse lúgubre verão islandês em que Una e Klara se preparam para o grande ocaso dos seus corações, acabam por abraçar-se numa jornada que se sente mais curta do que poderia ser.

“No Romper da Luz” é um daqueles casos em que uma longa metragem poderia ser mais longa, fica-se com a vontade de mergulhar mais, mesmo correndo o risco de desvirtuar este seu belíssimo minimalismo estético.

À medida que a autora destas linhas escreve, o filme cresce fora da tela e surgem novas dimensões que não se desenham imediatamente quando é visto. Talvez possa ser mal compreendido, a espaços, pelo seu curto tempo e pelo facto de não se alongar naquele sentimentalismo que às vezes sabe tão bem, mas a que os carácteres islandeses não se prestam tanto.

O sentimento encontra-se por descobrir, mas está presente, mostra-se tímida e paulatinamente, por exemplo, quando Una ensina Klara a voar de olhos semicerrados pela igreja acima recorrendo ao poder da imaginação.

Que poderosa esta imagem em que a dor é ultrapassada a bem da compaixão, da partilha humana, da expansão do eu para lá das suas fronteiras limitadas. Ali, como noutras ocasiões, “No Romper da Luz” é um brilhante filme sobre a transposição do corpo para o plano espiritual.

Quando Diddi parte verdadeiramente o plano terreno, todos os seus amigos, mas sobretudo as duas raparigas, iniciam a sua própria viagem para longe dos corpos. Seja nos momentos em que a dor é tão agigantada que é preciso entorpecer os sentidos ou quando há esperança no horizonte da mente, “No Romper da Luz” é uma lindíssima viagem que não se compraz na dor, deseja mais.

Se um dos primeiros planos tem lugar perante um majestoso por de sol, este feliz e pleno de visões de futuro, um dos últimos planos tem lugar naquilo que se esperaria o seu completo oposto. É aí que reside a ratoeira que é estendida ao espectador.

É que o segundo ocaso encerra não só o passado como o futuro, voando desta vez para a frente e já não através dos passos desacertados de Klara a caminhar às arrecuas. Ali chegadas Klara e Una, apertadas no mesmo abraço que envolvera Una e Diddi, partilham o mesmo espaço de amor universal, para lá do corpo.

“No Romper da Luz” é também este jogo de espelhos, sugerido, por exemplo, no momento em que ambas as mulheres surgem reflectidas na mesma janela, sobrepostas, apenas duas imagens fundidas.

Há ali uma partilha que é a da óbvia perda, mas ainda uma segunda que é a da universalidade da existência, algo que não se atém apenas no imediatismo do corpo físico e vai muito para além do egocentrismo daquela perda.

Ao invés de se fechar nessa perda, o filme abre-se à cura, talvez por isso seja tão curto. Pode supor-se que esse trabalho se encontra para lá daquele por de sol, um eterno work in progress em loop, imaginado, onde aqueles personagens podem ser substituídos por outros semelhantes, também perdidos entre as trevas e a luz que cega quando se sai do túnel.

No Romper da Luz é um desses poucos filmes que vive tanto da imaginação que corre o risco de perder o seu espectador. Num mundo em que o que é físico é tão importante, a capacidade de conseguir sair do túnel é o grande desafio. E este túnel tanto funciona como limitação como instrumento de expansão, depende apenas de quem o enfrenta.

"No Romper da Luz", de Rúnar Rúnarsson
“No Romper da Luz” – O minimalismo aplicado à dor
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