“Orwell: 2+2=5”: Depois não digam que não foram avisados!

"Orwell 2+2=5", de Raoul Peck Festival de Cinema de San Sebástian Ora "Orwell 2+2=5", de Raoul Peck Festival de Cinema de San Sebástian Ora

Em tempos em que a distopia se aproxima perigosamente da realidade e o totalitarismo parece uma moeda corrente, velhas evocações consideradas como limites exemplares dos excessos da indecência humana colhem hoje renovado interesse. E até a urgência que nos recorda que o never more pode mesmo voltar a acontecer.

Ora, vem isto a propósito de “Orwell: 2+2=5”, o documentário apresentado no passado festival de Cannes, e exibido em Donostia na secção Perlas. No rico e pungente documento de Raoul Peck recupera-se o prenúncio de Eric Blair (1903-1950), aka, George Orwell, um descendente do império britânico que sentiu o seu ser a arrepiar caminho num mundo que se queria governado pelos mais fortes. É o que temos hoje, não é?

É. O haitiano Peck, autor do pungente I Am Not Your Negro, dedicado a James Baldwin, percebeu que o conteúdo da mini-série da HBO, “Exterminate All the Brutes”, de 2021, sobre os aspectos genocidas do colonialismo europeu, carecia de um refrescamento. Daí sai então na fórmula de Blair, “2+2=5”, como uma coda dos regimes totalitários. Segundo ela, os cidadãos são capazes de, com algum esforço (ou persuasão) passar a aceitar falsidades como verdades absolutas.

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“Orwell: 2+2=5” combina biografia, o ensaio histórico e a reflexão política, num documentário denso, repleto de imagens de arquivo, excertos de adaptações de Animal Farm e 1984, mas bem filmes de Ken Loach sobre a Guerra Civil de Espanha – experiência marcante para Orwell, e até sketches dos Monty Python.

O filme estrutura-se em torno dos últimos anos de vida do escritor, isolado na ilha escocesa de Jura, onde começou a redigir 1984, antes de sucumbir à tuberculose em 1950. A leitura das suas cartas e textos é feita pelo ator Damian Lewis, que dá voz a um Orwell autocrítico quanto à sua origem social: um jovem educado em Eton, membro da “pequena alta classe média” britânica, que mais tarde rejeitaria os valores em que crescera, abraçando o socialismo e desenvolvendo uma análise implacável do seu tempo.

Temos ainda depoimentos de Milan Kundera, Pierre Bourdieu ou Edward Snowden, como que a estabelecer paralelos entre Orwell. Os dados são conhecidos: desigualdade económica representada por magnatas como Elon Musk ou Jeff Bezos; o controlo da informação pela máquina mediática de Rupert Murdoch; ou o poder dos algoritmos das redes sociais. Inevitavelmente, a narrativa desemboca nos líderes populistas contemporâneos – de Trump a Putin, passando por Meloni, Modi ou Milei.

Poderemos atualizar e acrescentar um Ventura?…

O grande impacto do documentário não reside no retrato biográfico, mas sim na ponte que estabelece com o presente. As denúncias orwellianas de manipulação da linguagem, vigilância em massa e desigualdade social ecoam hoje em fenómenos tão diversos como o domínio das redes sociais e dos algoritmos, o controlo mediático de conglomerados como o de Rupert Murdoch, ou a concentração obscena de riqueza nas mãos de plutocratas como Elon Musk e Jeff Bezos.

Putin, passando por Giorgia Meloni, Javier Milei ou Narendra Modi – ilustra de forma inequívoca que os alertas de Orwell não pertencem ao passado, mas descrevem o presente. Se por vezes o excesso de material torna o documentário vertiginoso, o essencial prevalece: a atualidade de Orwell. Fica o aviso para o futuro de um documentário pungente e obrigatório. Depois não digam que não foram avisados.

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“Orwell: 2+2=5”: Depois não digam que não foram avisados!
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