Não sei se foi do entardecer a desbotar-se na vidraça ou da teimosia do vento que se insinuava pelas frinchas como um velho conhecido malcriado, mas comecei a ver “Sonhos e Comboios” com aquela dúvida quase supersticiosa de quem abre um álbum herdado e receia que entre as páginas de cartão gasto repouse mais vida alheia do que a nossa própria. E repousa. A adaptação de Clint Bentley, inteiramente banhada por uma luz dourada que parece filmar por conta própria, apanha o espectador no contrapé e estende-se como um nevoeiro morno sobre a memória, o pressentimento e aquelas epifanias que só acontecem quando o tempo se distrai.
Bentley, que trouxe para o cinema a novela de Denis Johnson em parceria com Greg Kwedar, filma tudo sob uma devoção mal disfarçada a Terrence Malick. A câmara mantém-se rente ao chão, como quem espreita raízes, o sol despede-se cronicamente, a narração de Will Patton é tão profunda que parece murmurar a vida de alguém que conhecemos bem, dada a intimidade que nos é permitida, e a fotografia do brasileiro Adolpho Veloso parece sonhada antes de existir. Sente-se, aqui e ali, o eco do David Gordon Green inicial, todo ele lirismo agreste e pausas que dizem mais do que as falas, fluindo com o garbo do desabrochar de uma rosa na edição de Parker Laramie e com a subtileza da banda sonora de Bryce Dessner.
Robert Grainier, que Joel Edgerton habita com a parcimónia de quem sabe que o silêncio tem sabedoria antiga, é um lenhador posto nos confins de Idaho, condenado a abrir clareiras para um futuro que nunca o contempla da cintura para cima. Passa a vida a derrubar árvores e, sem dar por isso, vai derrubando também pequenas crenças domésticas sobre o que o mundo deveria ser. Trabalha em bandos errantes, meio tribo meio mecanismo, homens apressados como se a América estivesse eternamente atrasada para um comboio que partiu antes do horário.
Edgerton oferece um Robert órfão de mundo, um homem que conhece a solidão como quem decorou um catecismo. Assiste a um ataque racista, carrega culpas que o filme ameniza e, ainda assim, guarda espanto suficiente para amar Gladys. Felicity Jones irradia aquela luz que só existe no momento exacto em que a tarde se rende ao âmbar. Com ela Robert tem uma filha que lhe amplifica a alegria e a fragilidade. Afasta-se meses a fio para ganhar o pão e regressa sempre devagar, com a cautela de quem teme que a felicidade se parta se respirada à pressa.
O preço da solidão é constante na vida de Robert, mas ele corre dela do único modo que conhece, ocupando-se com o trabalho, com o corte das árvores, com a disciplina silenciosa do dia a dia. Cada clareira aberta, cada tronco abatido, funciona como um exorcismo, uma maneira de manter a ausência à distância e de se sentir vivo, mesmo quando o mundo se mostra indiferente. A dor das perdas que carregou, o abandono, a injustiça e os afectos que escaparam, atravessa-o silenciosa, mas não o paralisa; é parte da madeira que derruba, da rotina que o mantém em movimento. É nesse gesto repetitivo e quase ritual que Robert encontra um breve alívio, conciliando-se consigo mesmo e com a impossibilidade de preencher totalmente o vazio da vida que leva.
Os companheiros de labuta são homens talhados com a mesma rudeza da madeira que cortam. Silenciosos, castigados pelo frio e pela fadiga, difíceis de ler como os anéis de um tronco antigo. William H. Macy surge como Arn, guardião de explosivos pouco fiáveis e língua inquieta. Paul Schneider interpreta o ambíguo Apóstolo Frank, falador enigmático, quase um profeta de taverna, enquanto Clifton Collins Jr. encarna o enigmático Boomer. Kerry Condon dá vida a Claire Thompson, funcionária dos serviços florestais, que se revela um ombro amigo inesperado, carregando uma sensibilidade discreta mas profunda.
Entre uma árvore que cede e outra que hesita, Robert espreita destinos trágicos, quase míticos, e percebe que o mundo continua belo mesmo quando o rasga com as próprias mãos. Imagina-se andarilho reduzido ao gesto repetitivo da serra, como se a vida fosse uma oração mecânica dita de cabeça baixa. E é esse fadário que o aperta: a ausência de Gladys e da filha, o amor feito em fragmentos, o sonho tímido de uma serraria que talvez o pudesse fixar antes que o tempo o desmantele.
As cenas na cidade alargam o mistério breve da existência; tudo parece caber em meia dúzia de momentos furtados ao esquecimento, memórias sobreviventes como postais sem remetente. Edgerton devolve essa consciência com uma delicadeza quase invisível, uma elegância que prefere insinuar-se a impor-se.
“Sonhos e Comboios” ergue uma fábula de árvores, ferrovias e pequenos fantasmas domésticos, lembrando que por vezes a vida só descobre o próprio som quando cai e que há quedas que iluminam mais do que ferem.
Talvez o que matize este desfecho seja o trecho de “Both Sides Now”, de Joni Mitchell (ouça a versão de Willie Nelson ou talvez a de Glen Campbell), quando ela deixa cair a confissão desarmada de quem já viu o mundo pelo avesso: “Algo se perdeu, mas algo se ganhou vivendo a cada dia. Eu olhei para a vida de ambos os lados agora, de ganhar e perder, e ainda assim, de algum jeito, são ilusões da vida que eu recordo. Eu realmente não conheço a vida.”
Para mim, a canção paira sobre o filme como um véu translúcido, lembrando que tudo o que julgamos compreender se desfaz ao toque e que a existência, assim como os troncos que Grainier derruba, só revela a sua textura quando finalmente cede. Em sintonia com esse sentimento, parafraseando a música final do filme, cantada por Nick Cave, a vida mostra-se feita de sonhos, sonhos malucos que não conseguimos explicar, que duram horas e cuja sensação é impossível de descrever. Só nos resta vivê-los, até ao último suspiro.

