Alan Rudolph e o coro trágico da redescoberta

A obra de Alan Rudolph expõe a intimidade das nossas fissuras, num cinema onde a identidade se reescreve devagar, quase sem ser vista
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“The Secret Lives of Dentists” (2002)

Existem cineastas que se dedicam a explorar o mundo. Alan Rudolph parece mais interessado em explorar o ligeiro desvio que separa quem somos daquilo poderíamos ter sido ou daquilo que, no íntimo, julgamos ser. A sua obra, dispersa entre romances mais ou menos excêntricos, dramas mais ou menos intimistas e pequenas parábolas urbanas, é atravessada por um sentimento que quase passa por despercebido: o da redescoberta pessoal, não como uma epifania, mas como um gesto temeroso de quem, por alguma razão, se perdeu de quem era, numa memória que regressa com atraso. 

Rudolph chega ao cinema pela mão de Robert Altman, o que não o limita na sua ação, mas que lhe oferece um campo vasto de experimentação. Notamos essa herança altmaniana nos seus filmes compostos por personagens que entram e saem de cena como se a vida fosse uma partitura por criar. Mas Rudolph afasta-se do mestre quando começa por filmar não o caos social, mas a intimidade dos desencontros interiores. Em Choose Me” (1984), tudo gira à volta dos encontros improváveis numa cidade notívaga que parece suspender-se no tempo. Cada personagem procura algo e ninguém tem consciência do quê. Uma espécie de redescoberta adiada que se anuncia nos diálogos musicais, na luz húmida dos bares, nos silêncios da espera. 

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“Choose Me” (1984)

Antes, porém, já Remember My Name” (1978) deixava entrever o território emocional que Rudolph continuaria a explorar. Aqui, a redescoberta assume uma forma mais inquieta. Uma mulher que vagueia pela cidade como quem tenta recuperar não apenas um passado, mas a versão de si própria que ficou aprisionada nele. O filme é um estudo tenso sobre a necessidade de reconstruir uma identidade perdida, mesmo que o caminho escolhido para o alcançar seja errático, perturbado e quase febril. 

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“Remember My Name” (1978)

A singularidade de Rudolph prende-se com a ideia de que a sua redescoberta não tem o fulgor transformador que o cinema gosta de demonstrar. Nada acontece com estrondo, as mudanças são quase invisíveis, como se a identidade fosse um tecido que se gasta devagar. Em Trouble in Mind” (1985), a cidade fictícia de Rain City é um estado de espírito, uma malha urbana onde as personagens tentam recordar quem foram ou inventam quem desejam ser. Aqui, a redescoberta assume a forma de um desvio, um pequeno gesto, mas que obriga a personagem a olhar para si de lado, com estranheza e um determinado grau de familiaridade, em simultâneo. 

Ao longo da sua filmografia, de Made in Heaven” (1987) a The Secret Lives of Dentists” (2002), repete-se esta ideia de que a identidade é algo que necessita de um ajuste constante, e que cada relação, cada aproximação ou afastamento, funciona como um espelho que devolve no seu reflexo uma versão inesperada de nós mesmos. Rudolph filma estas transformações com uma delicadeza difícil de encontrar. A câmara aproxima se e afasta-se como quem respeita o espaço emocional das personagens. Os reencontros, consigo próprios ou com os outros, são filmados com fragilidade, como acontecimentos precários, sempre prestes a desfazerem-se. 

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“Made in Heaven” (1987)

Não devemos confundir o sentimento de redescoberta pessoal com autoconhecimento, em Rudolph. É, sim, mais um processo do que uma conclusão. As suas personagens movem-se por impulsos, tropeçam nas suas próprias contradições e enganos, mas nunca deixam de procurar, embora por vezes a procura seja o único destino possível. Nos seus filmes, a vida é feita de pequenas correções de rota, como se cada um tivesse direito (ou a própria natureza involuntária) de ser muitos ao longo do tempo.

Esta recusa de uma identidade estática é precisamente o que torna a obra de Alan Rudolph profundamente humana. Filma o ser humano como matéria em movimento, seres que se perdem, reencontram pedaços de si, voltam atrás, tentam novamente. A redescoberta no seu cinema não é uma chegada, é um estado intermitente, um momento esquecido de luz que ilumina o presente (e, por instantes, o presente) antes que a escuridão se volte a instalar. 

Rudolph lembra-nos que a nossa verdade raramente surge inteira Chega-os fragmentada, em personagens que nos dizem aquilo que não queremos ouvir, em locais que não reconhecemos como nossos, em esquecimentos que, mais tarde, ganham sentido. O seu cinema é um convite a aceitar esta natureza contínua da mudança: a ideia de que, de cada vez que olhamos para nós próprios, olhamos alguém diferente. 

Talvez por isso a sua obra seja um pequeno refúgio. Um lugar onde nos é permitido questionar, descobrir, perder e reencontrar quem somos. Sem certezas, apenas na tentativa de escutar, baixinho ou berrando, o murmúrio da vida interior.