Análise: As lições de Gramado 2025

A 53ª edição do festival gaúcho revela os acertos, as fragilidades e o papel do maior festival do Brasil, ao mesmo tempo em que evidencia o vigor de um cinema brasileiro em expansão e em diálogo com seu público.
‘Cinco tipos de medo Bruno Bini 1 ‘Cinco tipos de medo Bruno Bini 2

Há três semanas publicamos aqui no Cinema Sétima Arte uma lista com oito filmes brasileiros inéditos para ficar de olho. A repercussão foi surpreendente: mais de 30 mil compartilhamentos em uma de nossas redes sociais em questão de horas. O que deveria ser apenas uma sugestão descompromissada de programação acabou assumindo a dimensão de um pequeno fenômeno viral, e sinalizando que o cinema brasileiro, quando colocado em evidência, desperta interesse para além do círculo habitual de cinéfilos e especialistas. É claro que algoritmos não são mediadores infalíveis, mas essa resposta sugere um engajamento inédito com a produção nacional, movimento que, para o bem ou para o mal, como já defendíamos naquele mesmo texto, está diretamente ligado ao sucesso estrondoso de Ainda Estou Aqui no ano passado.

Mas a onda que agora se percebe nos festivais e nas redes tem lastro em números concretos. Segundo dados divulgados pela ANCINE no final de agosto, a participação de mercado dos filmes nacionais saltou de 3,2% para 10,1% em 2024, um crescimento de 241% que recolocou o cinema brasileiro nas salas com força inédita no pós-pandemia. Em 2025, até a 23ª semana do calendário cinematográfico, essa presença já atingia 16,5% do público, com 8,7 milhões de ingressos vendidos. O impulso veio de títulos de grande alcance, como Ainda Estou Aqui (mais de 5 milhões de espectadores), O Auto da Compadecida 2 (mais de 4 milhões) e Minha Irmã e Eu, o primeiro filme em anos a romper a marca de 1 milhão já em janeiro.

Contudo, a curva ascendente não se explica apenas pelo sucesso pontual desses blockbusters nacionais. A volta da Cota de Tela, agora regulamentada, garantiu espaço competitivo; o Fundo Setorial do Audiovisual destinou cerca de R$ 500 milhões a produções independentes em 2024; e o parque exibidor voltou a crescer, chegando a mais de 3.500 salas em operação. Trata-se, portanto, de uma retomada sustentada por políticas públicas e pela reestruturação do mercado; circunstância que fornece o pano de fundo para entender esse entusiasmo com as produções vindas do Brasil.

2560x384 RC Cinema7arte 3
Publicidade

É nesse contexto que dois dos oito títulos daquela nossa lista de recomendações desembarcaram na competição do último festival de Gramado, que encerrou sua 53ª edição há duas semanas: Cinco Tipos de Medo, que saiu como o grande vencedor, e Papagaios, que veio logo em seguida conquistando o prêmio de melhor filme pelo público. Mais do que simplesmente premiar filmes, a edição de 2025 colocou em evidência questões que ultrapassam a tela, revelando tanto os acertos quanto as fragilidades de um festival que continua sendo referência, ao mesmo tempo em que reflete os desequilíbrios e as oportunidades do cinema brasileiro contemporâneo.

Um festival sem “assinatura”

O Festival de Gramado é, historicamente, o festival de cinema brasileiro com maior apelo midiático. É também o que mais influencia a agenda das produções nacionais e aquele que, em grande medida, pauta o discurso sobre o cinema feito no Brasil. Esse protagonismo, no entanto, traz consigo um conjunto de fragilidades que há anos são apontadas. A principal delas é a ausência de um comitê de seleção fixo, como ocorre na maioria dos festivais de prestígio do Brasil e do mundo. Em vez disso, a curadoria é rotativa, montada ano a ano, geralmente composta por celebridades e figuras conhecidas da indústria — neste 2025, a escolha recaiu sobre os atores Caio Blat, Camila Morgado e o jornalista Marcos Santuario.

Esse modelo não apenas inviabiliza o desenvolvimento de uma “assinatura” crítica consistente ao longo dos anos, como também acaba por revelar uma programação fragmentada, dependente das afinidades momentâneas de quem está no comando. A sensação, ano após ano, é de recomeço, como se o festival abrisse mão de uma identidade curatorial acumulativa capaz de estabelecer diálogos mais amplos entre os filmes, os cineastas e o público.

Essa fragilidade estrutural também se manifesta na relação do festival com o cinema gaúcho. As produções locais, em vez de ocuparem espaço de protagonismo na competição, acabam relegadas a seções paralelas de menor visibilidade. Para completar, a cerimônia de encerramento é desmembrada em dois dias: um, dedicado ao cinema gaúcho e seções “menores”, na véspera do grande evento, outro, no dia seguinte, para os longas da competição principal. Aparentemente pensada como uma solução pragmática, justificada em nome da logística,  a divisão acaba, no entanto, por reforçar a percepção de hierarquia e marginalização, consolidando a ideia de que o cinema gaúcho ocupa um lugar periférico na narrativa oficial do festival.

Outra questão recorrente, como bem lembrou o crítico Luiz Carlos Merten no Estadão, é a ausência de críticos de cinema no júri principal. A presença de atores, produtores ou técnicos pode, sem dúvida, enriquecer a pluralidade de olhares, mas a falta de uma perspectiva analítica mais rigorosa muitas vezes expõe o júri a certas saias justas. Nesta edição, por exemplo, todos os sete filmes em competição acabaram premiados. Decisão que, embora generosa à primeira vista, dilui a força simbólica dos Kikitos e esvazia a noção de disputa que, queira-se ou não, ainda é parte essencial da lógica dos festivais.

53FCG 23082025 15051 Easy Resize.com 4
Gero Camilo prêmio de melhor ator por “Papagaios”

Foi nesse contexto que chamou a atenção o discurso de Gero Camilo ao receber o prêmio de melhor ator por Papagaios. Em tom inflamado, o ator pediu que o festival abandonasse a palavra “melhor” para designar os premiados e passasse a chamá-los simplesmente de “destaques”. O pedido foi atendido de imediato pelos apresentadores da cerimônia de encerramento que, visivelmente constrangidos, ajustaram a nomenclatura a partir daquele momento até o fim da noite. A crítica de Camilo não é nova, e volta e meia reaparece nas premiações, mas soa também um tanto esvaziada. “O melhor” em qualquer festival ou premiação nunca foi uma verdade absoluta, mas sim a tradução de um recorte, de um contexto, de uma negociação entre sensibilidades artísticas e subjetividades do júri. Faz parte do jogo, e, mais do que isso, da tradição. A palavra “melhor” carrega justamente esse peso ritualístico que dá relevância ao prêmio, mesmo quando sabemos que é uma escolha contingente.

Não é de hoje que artistas contestam o sistema de premiações dos festivais. Em 1973, quando venceu o Oscar por The Godfather (O Poderoso Chefão no Brasil, O Padrinho em Portugal), Marlon Brando recusou o prêmio e enviou ao palco a ativista indígena Sacheen Littlefeather para denunciar a representação estereotipada dos povos indígenas norte-americanos em Hollywood. O gesto, radical e político, permanece como um dos momentos mais marcantes da história do cinema. Fica a sugestão a Gero Camilo: se a palavra “melhor” pode incomodar tanto, talvez uma atitude mais incendiária como a de Brando dê mais corpo a este tipo de crítica. Um pedido para que os prêmios sejam rebatizados como “destaques” soa mais como uma concessão à sensibilidade dos tempos atuais — uma atualização retórica que sinaliza atenção às demandas contemporâneas por inclusão — do que como uma ruptura real com a lógica hierárquica e ritualística que sustenta o próprio festival.

Os filmes da Competição 

Paradoxalmente, se a ausência de um comitê de seleção fixo pode ser apontada como a maior fragilidade de Gramado, a curadoria de 2025 surpreendeu positivamente. O trio responsável pelas escolhas evitou os atalhos previsíveis e conseguiu organizar uma competição que, embora marcada pela heterogeneidade, formou um conjunto coeso e estimulante. O mérito não esteve apenas em equilibrar diferentes estilos e linguagens, mas também em colocar lado a lado nomes já familiares ao grande público, como Miguel Falabella, e vozes mais marginais ao circuito tradicional. Essa mistura deu ao festival um retrato plural e até contraditório do cinema brasileiro atual; justamente por isso, um retrato vivo, colorido e mais próximo da complexidade do país do que uma seleção excessivamente uniforme poderia oferecer.

O grande vencedor foi Cinco Tipos de Medo, dirigido pelo mato-grossense Bruno Bini. Último longa a ser exibido na competição, também foi o mais aplaudido pelo público, de acordo com o “aplausômetro” das redes sociais. A história acompanha um músico (João Vitor Silva) cuja vida se cruza com a de Marlene (Bella Campos), enfermeira envolvida com o traficante Sapinho (Xamã). Com estrutura de filme puzzle, a obra despertou comparações com o cinema de Alejandro González Iñárritu, mas se destacou por um olhar enraizado nas marcas sociais e afetivas do Brasil. Levou quatro Kikitos, incluindo melhor filme, roteiro e ator coadjuvante para Xamã. A vitória carrega um peso simbólico importante: é a presença vigorosa de uma cinematografia do Centro-Oeste ainda pouco explorada no circuito nacional.

Aline Marta 5
Aline Marta Maia melhor atriz coadjuvante por “A Natureza das Coisas Invisíveis”

Se Bini conquistou o prêmio máximo, foi Papagaios, de Douglas Soares, que roubou os corações. O longa recebeu o prêmio do público e outros três Kikitos, surgindo como um verdadeiro alien dentro de uma competição que, apesar de diversa, em grande parte ainda orbitava entre formas mais convencionais de narrativas. Satirizando os “papagaios de pirata”, personagens obcecados em aparecer atrás dos repórteres de TV, o filme constrói uma fábula social entre o grotesco e o poético, expondo nossa fome de visibilidade com frescor e irreverência. Foi uma escolha popular justa, que deu ao festival uma nota rara de desvio e ousadia.

Em registro completamente diferente, um dos títulos mais esperados dessa competição foi A Natureza das Coisas Invisíveis, de Rafaela Camelo, estreado mundialmente em fevereiro na mostra Generation em Berlim. O longa, que conquistou o prêmio de melhor atriz coadjuvante e o prêmio especial do júri, é de uma beleza discreta: acompanha duas crianças em um hospital, experimentando descobertas silenciosas diante da fragilidade da vida. É um filme delicado, contido, mas também consciente demais de sua própria sensibilidade, quase excessivamente calculado em sua pureza. Ainda assim, essa contenção lhe confere um brilho particular, uma força que reside justamente na modéstia da forma. E a emoção maior veio fora da tela: Aline Marta Maia, premiada como atriz coadjuvante, foi ao palco em cadeira de rodas e emocionou a plateia com um discurso de força e resiliência.

Seguindo essa linha de intimismo, do Paraná veio , de Laís Melo — um estudo de personagem e, sobretudo, um filme de atrizes. A narrativa acompanha uma mulher recém-divorciada que tenta reorganizar a vida com suas três filhas. É íntimo, atento aos silêncios e aos pequenos gestos, e talvez justamente por isso ressoou com força junto à crítica, que o escolheu como seu favorito. Levou três Kikitos, incluindo melhor direção e fotografia, além do já citado prêmio da crítica. Se Papagaios explodia em sátira, buscava o caminho inverso: a contenção como linguagem.

O nome mais midiático da seleção foi o ator Miguel Falabella, com Querido Mundo, seu terceiro filme na direção. As expectativas eram altas: o longa chegou a Gramado como o mais badalado entre os sete concorrentes, mas saiu de forma discreta, sem grande alarde. Filmado em preto e branco, o roteiro acompanha o encontro inesperado de um casal cujas vidas se cruzam nos escombros de um prédio abandonado no Rio de Janeiro às vésperas do Ano Novo. Apenas Malu Galli, que interpreta a protagonista, foi reconhecida com o Kikito de melhor atriz. A cena da premiação teve um toque inusitado: surpreendida durante a gravação do programa Vale Tudo, Galli improvisou um discurso breve que transmitido ao vivo.

E por fim, encerrando a mostra competitiva, houve Sonhar com Leões, estrelado por Denise Fraga e dirigido pelo português Paolo Marinou-Blanco. A coprodução luso-brasileira desembarcou no Rio Grande do Sul cheia de pompa, vinda de uma recente tour europeia onde conquistou o prêmio máximo no Festival de Cinema Atlântida Mallorca, na Espanha, e de melhor realização no Festival Europeu de Cinema de Palić, na Sérvia. Apesar desse histórico internacional, o filme não conseguiu se impor em Gramado, recebendo apenas uma menção honrosa do júri, encabeçado pelo ator Edson Celulari, quase como um prêmio de consolação numa edição em que todos os filmes foram contemplados.

Sonhar com Leões acabou se revelando o título mais frágil da competição. A narrativa acompanha uma imigrante brasileira em Lisboa diagnosticada com câncer terminal que busca morrer com dignidade recorrendo a uma organização clandestina; mas a promessa se desfaz em absurdos tragicômicos. O filme aposta num humor negro carregado de sarcasmo e piscadelas cúmplices, encenado num tom deadpan que faz lembrar Wes Anderson.
Só que esse recurso, repetido ao extremo, esvazia a densidade emocional da história e transforma uma possível reflexão sobre autonomia e dignidade numa sucessão de punchlines aleatórias. O efeito final foi uma evidente dificuldade em estabelecer uma conexão com o público e, como ficou claro na cerimônia de encerramento, também com o júri.

Palmarés da 53ª Edição

Longas-Metragens de Ficção:

Melhor Filme: “Cinco Tipos de Medo”, de Bruno Bini

Melhor Direção: Laís Melo, por “Nó”

Melhor Ator: Gero Camilo, por “Papagaios”

Melhor Atriz: Malu Galli, por “Querido Mundo”

Melhor Roteiro: Bruno Bini, por “Cinco Tipos de Medo”

Melhor Fotografia: Renata Corrêa, por “Nó”

Melhor Montagem: Bruno Bini, por “Cinco Tipos de Medo”

Melhor Trilha Musical: Alekos Vuskovic, por “A Natureza das Coisas Invisíveis”

Melhor Direção de Arte: Elsa Romero, por “Papagaios”

Melhor Atriz Coadjuvante: Aline Marta Maria, por “A Natureza das Coisas Invisíveis”

Melhor Ator Coadjuvante: Xamã, por “Cinco Tipos de Medo”

Melhor Desenho de Som: Bernardo Uzeda, Thiago Sobral e Damião Lopes, por “Papagaios”

Prêmio Especial do Júri: “A Natureza das Coisas Invisíveis”, de Rafaela Camelo

Menção Honrosa: “Sonhar com Leões”, de Paolo Marinou-Blanco

Melhor Longa-Metragem Brasileiro pelo Júri Popular: “Papagaios”, de Douglas Soares

Melhor Longa-Metragem Brasileiro pelo Júri da Crítica: “Nó”, de Laís Melo

Competição Documentários:

Melhor Filme: “Lendo o Mundo”, de Catherine Murphy e Iris de Oliveira

Menção Honrosa Documentário: “Para Vigo Me Voy!”, de Lírio Ferreira e Karen Harley

Longas-Metragens Gaúchos:

Melhor Filme: “Quando a Gente Menina Cresce”, de Neli Mombelli

Melhor Direção: Jonatas e Tiago Rubert, por “Uma em Mil”

Melhor Ator: Stephane Brodt, por “Passaporte Memória”

Melhor Atriz: Lara Tremouroux, por “Passaporte Memória”

Melhor Roteiro: Jonatas e Tiago Rubert, por “Uma em Mil”

Melhor Fotografia: Bruno Polidoro, por “Bicho Monstro”

Melhor Direção de Arte: Gabriela Burck, por “Bicho Monstro”

Melhor Montagem: Joana Bernardes e Thais Fernandes, por “Uma em Mil”

Melhor Desenho de Som: Rodrigo Ferrante e André Tadeu, por “Rua do Pescador n° 6”

Melhor Trilha Musical: Renato Borghetti, por “Rua do Pescador n° 6”

Menção Honrosa: Para o elenco feminino de “Quando a Gente Menina Cresce”

Melhor Filme pelo Júri Popular: “Quando a Gente Menina Cresce”, de Neli Mombelli

Competição de Curtas-Metragens Brasileiros:

Melhor Filme: “FrutaFizz”, de Kauan Okuma Bueno

Melhor Direção: Adriana de Faria, por “Boiuna”

Melhor Ator: Pedro Sol Victorino, por “Jacaré”

Melhor Atriz: Jhanyffer Santos e Naieme, por “Boiuna”

Melhor Roteiro: Ítalo Rocha, por “Réquiem para Moïse”

Melhor Fotografia: Thiago Pelaes, por “Boiuna”

Melhor Montagem: Lobo Mauro, por “Samba Infinito”

Melhor Trilha Musical: As Musas, por “As Musas”

Melhor Direção de Arte: Ananias de Caldas e Brian Thurler, por “Samba Infinito”

Melhor Desenho de Som: Marcelo Freire, por “Jeguatá Xirê”

Prêmio Especial do Júri: “Aconteceu a Luz da Lua”, de Crystom Afronário

Menção Honrosa: “Quando Eu For Grande”, de Mano Cappu

Prêmio Júri da Crítica: “O Mapa em que Estão Meus Pés”, de Luciano Pedro Jr.

Prêmio Canal Brasil de Curtas: “Na Volta Eu Te Encontro”, de Urânia Munzanzu

Melhor Filme Júri Popular: “Samba Infinito”, de Leonardo Martinelli

Premios especiais: 

Troféu Kikito de Cristal: Rodrigo Santoro

Troféu Eduardo Abelin: Mariza Leão

Troféu Oscarito: Marcélia Cartaxo