No coração de Berlim, uma antiga central elétrica foi convertida, no final dos anos 1990, em um dos espaços mais enigmáticos da cultura contemporânea: um clube de música eletrônica que rapidamente se tornou um mito global. Conhecido pela sua política de entrada implacável, pelo banimento total de telemóveis — que reforça a ideia de que o que acontece ali permanece entre aquelas paredes — e por uma arquitetura brutalista que sugere uma sacralidade industrial, o Berghain adquiriu um estatuto quase religioso. Não à toa, foi apelidado de “igreja” pelos seus frequentadores e recentemente reconhecido como patrimônio cultural. Ali, vende-se a ideia de que a música não é mero entretenimento, mas o catalisador de um ritual coletivo. Na escuridão da pista, corpos se fundem num transe comum, onde a repetição da batida induz à catarse, ao êxtase, à suspensão do eu.
Foi nesse espaço que se consolidou uma visão muito particular da cultura tecno, onde a pista é entendida como zona liminar entre o profano e o espiritual. Também foi ali que artistas como o dj francês Kangding Ray moldaram sua trajetória, criando experiências sonoras intensas que purificam, atravessam e curam.
É justamente essa abordagem — e a música acachapante de Ray — que está no coração de Sirât, obra avassaladora do galego Oliver Laxe que encerrou o terceiro dia da competição em Cannes com um soco no estômago e outro na alma. A banda sonora composta por Ray não embala, guia. Do início ao fim, ela nos arrasta por um purgatório sensorial. Primeiro o inferno, depois, com sorte, a redenção.
O título do filme remete ao conceito islâmico do “caminho correto”: uma “ponte afiada como navalha” por onde, segundo o Alcorão, todos devem passar para alcançar o paraíso. Um teste de fé, um rito de passagem. Essa jornada começa numa rave em pleno deserto marroquino. No meio da multidão de corpos suados, chapados e libertos, um homem atravessa a pista segurando panfletos com a foto da filha desaparecida. Luis (Sergi López), um espanhol na casa dos cinquenta, caminha ao lado do filho mais novo, Esteban (Bruno Núñez), o menino que encara a travessia como uma grande aventura lúdica. No meio do deserto, a batida do techno explode em ondas, criando um efeito sísmico, quase violento. Uma parede de som fincada no meio do nada, como se Mad Max virasse um musical sobre o fim do mundo.
Só que quando menos esperamos, o choque e a ruptura. A festa termina abruptamente quando o exército irrompe no local e ordena que todos os cidadãos da União Europeia deixem o território imediatamente. Algo grave está acontecendo “lá fora”. O mundo parece colapsar. E é nesse limbo que começa a verdadeira odisseia de Luis: um pai em ruínas, um homem em busca de sentido, atravessando o deserto; não apenas no mapa, mas também na alma.
Como em O Que Arde (Prêmio do Júri em 2019 na Un Certain Regard), a paisagem volta a ser personagem. O deserto marroquino não acolhe, não alivia, não oferece sombra. É árido, impiedoso, e é dentro desse vazio que se formam os encontros entre os personagens, interpretados majoritariamente por não-atores. Jade (Jade Oukid), Steffi (Stefania Gadda), Josh (Joshua Liam Henderson), Tonin (Tonin Janvier) e Bigui (Richard Bellamy) completam o cenário e são apresentados um a um, enquanto dançam, perdidos no transe coletivo, na belíssima sequência de abertura.
Há ecos poderosos de Sorcerer, de William Friedkin na construção dessa jornada física e espiritual através de um território inóspito. Como no clássico de 1977, também aqui acompanhamos corpos dilacerados, conduzidos por uma missão impossível num cenário onde a natureza é indomável e a redenção parece sempre um passo além do alcance.
Só que Laxe desmonta a narrativa clássica do filme catástrofe e o constroi como uma experiência imersiva, operando por imagens e sons que se infiltram, por um cinema que exige vulnerabilidade. E com uma carga emocional tão eletrizante, que se assiste com uma mão no coração e a outra cobrindo os olhos. Trata-se de uma jornada imprevisível rumo ao abismo, que, no fim, nos pergunta: o que resta da nossa humanidade depois do terror absoluto? E onde reencontrar alguma possibilidade de esperança quando tudo parece ter sido consumido?
É impossível dizer mais sem estragar a experiência atordoante que é Sirat, uma obra-prima que se deve ir às cegas, como quem caminha de olhos vendados pela beira de um precipício. Parte jornada mística, parte filme de terror existencial, é uma obra que trabalha o sensorial para escavar o metafísico.
É apenas o terceiro dia de Cannes, e já aqui temos o melhor filme do festival.


