Um dos sintomas dos grandes festivais, especialmente em anos fracos, é uma busca ansiosa por “tesouros escondidos” no meio da programação por parte dos jornalistas presentes. Nesses casos, qualquer filme que seja um pouco mais que decente consegue ser imediatamente alçado à condição de favorito do dia, recebendo uma atenção e um entusiasmo muitas vezes desproporcionais.
Dois desses filmes surgiram esta semana no concurso principal e, embora sejam muito mais que filmes “decentes”, viraram logo os queridinhos do dia. Em meio a uma das competições mais fracas dos últimos anos em Cannes, eles conseguiram revitalizar o evento, que andava dormente, ainda que não chegam para ser os grandes filmes dessa edição. São eles a britânica Andrea Arnold com o seu drama “Bird” e o francês Jacques Audiard numa arriscada incursão no musical com “Emilia Perez”.
Em contextos completamente diferentes, estes dois filmes exemplificam a habilidade de dois cineastas veteranos em explorar as inúmeras possibilidades de expansão da forma. Arnold chegou a Cannes com um filme que ficou pronto dias antes da sua apresentação mundial. “Bird” é um belíssimo filme que dá continuidade ao universo dos desajustados e dos que vivem à margem que ela já filmou antes em “Fish Tank” (2009) e “American Honey” (2016) ambos estreados em competição aqui em Cannes.
No novo filme, que a britânica diz que foi o mais difícil da sua vida, ela filma seus personagens de perto, com uma câmera trêmula, no ombro, que corre atrás dos seus personagens e que parece querer captar estes corpos quase como se tratasse de um documentário. A história gira em torno de Bailey (Nykiya Adams) uma menina de 12 anos, que vive com o seu pai branco, Bug (Barry Keoghan), e com o irmão adolescente Hunter (Jason Buda) numa espécie de squat nos arredores de uma pequena cidade inglesa. Através dos olhos dela, testemunhamos uma história de traumas familiares replicados de geração em geração, onde o amor coexiste com feridas profundas e hostis.
A certa altura, Bailey conhece Bird (Franz Rogowski), um rapaz enigmático e de espírito livre que adiciona uma camada de simbolismo e espiritualidade ao filme. Bird torna-se uma figura quase xamânica para Bailey, guiando-a numa jornada de redescoberta mútua.
Arnold não só evolui sua marca autoral de cinema social britânico, como parece querer fundir a ficção com algo completamente novo, entre o realismo mágico e o documentário. Para tal efeito, ela cria um universo onde os animais, e em especial os pássaros, são uma presença constante ao redor dos personagens. Não como meros observadores passivos mas representando uma força protetora contra a hostilidade do mundo exterior. Ao dissolver as fronteiras entre homem e natureza, colocando-os no mesmo campo de visão, sem hierarquias que os distingam, o filme desenvolve uma simbiose entre esses dois mundos e dá origem a algo verdadeiramente poético e impressionante.

Chegamos então ao segundo filme dessa leva, que chegou com muito mais alarde que o discreto filme de Arnold e apanhou toda a gente de surpresa, “Emília Perez” do parisiense Jacques Audiard.
Um filme de um risco tão incalculável que, visto no papel, tinha tudo para dar errado. A história gira em torno de um chefe do tráfico mexicano (Karla Sofía Gascón) que contrata uma advogada brilhante (Zoe Saldanha) para ajudá-lo em sua missão de realizar uma cirurgia de mudança de sexo e começar uma nova vida como mulher. Começa como um thriller retratando a violência e a corrupção sistêmica que assolam o México e acaba se transformando no mais inesperado dos gêneros, um musical.
Quem entrou no filme do realizador francês sem saber onde estava se metendo ficou em absoluto choque. O que tinha tudo para ser um desastre monumental, pouco a pouco foi dando lugar a um épico disfuncional, e pleno de energia, que se revelou no veículo perfeito para a protagonista de Gascón brilhar, interpretando dois papéis complicados como o chefe do cartel, como homem, e depois como mulher, dando origem a personagem título.
Se à primeira vista, “Emilia Perez” parecia combinar elementos que nunca poderiam coexistir dentro dum mesmo filme, o brilhantismo da realização de Audiard conferiu ao filme um nível de integridade que o fez ainda maior, e que permaneceu intacto até o fim. A prova disso foi a efusiva e longa salva de palmas na sessão de imprensa no Debussy, talvez a mais intensa desde o início do festival.
Jacques Audiard é um velho conhecido de Cannes, onde ele meio que se especializou em retratar as experiências do “outro”. Foi aqui em 2009 que ganhou o grande prémio do Júri com o fabuloso “O Profeta”, um drama intenso que acompanhava a ascensão de um jovem árabe em uma prisão francesa, oferecendo uma visão crua sobre a sobrevivência e o poder. Seguiu-se de “Ferrugem e Osso” (2012), um romance trágico belga com Marion Cotillard e Matthias Schoenaerts vivendo uma história de amor imprevisível e devastadora, e chegou ao seu auge em 2015, quando ele levou a Palma de Ouro por “Dheepan”, um filme que misturava a dureza da realidade dos refugiados do Sri Lanka com a esperança de um novo começo na França.
Olhando agora para trás, é quase como se esses filmes tivessem preparado o terreno para que “Emília Perez” pudesse existir, um trabalho de uma ousadia impressionante e que emerge das cinzas da sua improbabilidade e se revela um intricado balé sobre identidade, poder e redenção.
Se estes ainda não são os filmes pelo qual a edição de 2024 de Cannes será lembrada, pelo menos parecem indicar que estamos num bom caminho.
 
					 
			 
						 
				 
				 
			 
						
 
						 
					

 
										 
									 
										 
									 
										 
									 
										 
									 
										 
									 
										