“Gretchen – Filme Estrada”: a política dos que se atrevem

O documentário não é só um retrato de uma campanha falhada, mas um ensaio sobre a política como lugar de reinvenção e de dura exposição
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“Gretchen – Filme Estrada” (2010), de Eliane Brum e Paschoal Samora

Desde os tempos da Grécia Antiga, quando política e cidadania se confundiam como expressão do ethos colectivo, o desejo de participar nas decisões públicas acompanha a humanidade. O espaço da ágora, lugar do encontro, do embate retórico e da acção, foi substituído por palanques, câmaras legislativas, redes sociais e transmissões em directo. O espírito da pólis, no entanto, segue vivo, ainda que muitas vezes deturpado, capturado por interesses pessoais ou confundido com fama e performance.

Hoje, em tempos de pós-verdade, hiperexposição e personalização da política, vemos cada vez mais celebridades a disputar cargos públicos. Atletas, apresentadores, ex-concorrentes de reality shows, cantores e influenciadores digitais utilizam o capital simbólico da notoriedade como atalho rumo à institucionalidade. A lógica parece simples: se sou conhecido, serei eleito. Mas a realidade, essa dura, contraditória e que não cabe nos stories, é outra.

Falo por experiência própria. No ano passado, fui candidato a vereador. Não sou famoso. Sou jornalista, professor e militante. Entrei na disputa movido por um compromisso com o colectivo e com a transformação de uma cidade que parecia sufocada por práticas políticas arcaicas, envolta numa polarização entre dois grupos que se revezam no poder há mais de trinta anos. Tinha ideias, propostas e pessoas ao meu lado. Mas bastou a campanha começar para perceber que querer fazer política e fazer campanha eleitoral são coisas distintas. O corpo a corpo, o “olhar nos olhos” sob sol ou chuva, a tentativa de ser ouvido num país onde tanta gente já não escuta nem a si mesma — tudo isso confrontou-me.

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Lembrei-me muito da Gretchen. Sim, a rainha do rebolado, a musa pop, a mulher que virou meme e resistiu a décadas de machismo e escárnio mediático. Mas também a candidata à presidência da câmara que protagoniza o documentário “Gretchen – Filme Estrada” (2010), realizado por Eliane Brum e Paschoal Samora. A longa-metragem acompanha a sua candidatura em Ilha de Itamaracá (PE), revelando com crueza o vazio entre o palco e o palanque. Gretchen queria ajudar, mas não sabia como. E, mais do que isso, não sabia se o povo queria ser ajudado por ela.

O filme escancara esse desencontro. A câmara não poupa os momentos de tensão, improviso e desorientação. Gretchen, conhecida a nível nacional, era, naquela cidade, apenas mais uma candidata. Mesmo repetindo a frase que virou meme (“eu sou evento”), o mito da celebridade ruiu ao primeiro comício esvaziado, à primeira caminhada ignorada, à primeira promessa recusada. A política não é um palco. É uma arena, suja e exaustiva, onde quem não sabe escutar não sobrevive.

E é isso que o documentário revela: uma mulher à procura de um novo lugar, mas sem um guião claro. Gretchen não tinha uma estrutura partidária robusta nem uma equipa preparada para a campanha; a única “estrutura” que tinham era um copo de refrigerante e um pão com mortadela. A sua candidatura parecia mais um gesto simbólico para tentar recuperar algum espaço no debate público, algo tão simbólico quanto os seus maiores êxitos — “Freak Le Boom Boom” (1979), “Conga Conga Conga” (1981) e “Melô do Piripipi” (1982) — que, além de sustentar a família, também financiaram uma campanha baseada em inúmeros espetáculos de circo a preços ridículos, evidenciando o seu ostracismo. Nesse terreno difícil, teve de enfrentar limitações, preconceitos, desconfianças e, sobretudo, uma grande frustração. A mesma frustração que eu, anónimo, conheço bem: a de não ser ouvido.

É cómico, mas também didáctico, esse fracasso. E aqui não uso “fracasso” como sinónimo de derrota, mas como experiência que revela. Gretchen, ao contrário de tantos políticos profissionais, não usou máscaras. Não manipulou afectos, nem prometeu o que não poderia cumprir. A sua sinceridade, muitas vezes fora da casinha, gerava confusão. A sinceridade, na política, é quase uma imprudência.

O documentário é, portanto, mais do que um retrato de uma campanha mal-sucedida. É um ensaio sobre a política como espaço de reinvenção, mas também de exposição brutal. Eliane Brum, que já se debruçou sobre tantos corpos feridos pela negligência do Estado brasileiro no quotidiano como repórter, fixa-se aqui numa mulher a tentar refazer-se pelo colectivo, enfrentando a resistência das estruturas que tornam a política um jogo excludente, machista e centrado em interesses familiares e coronelistas.

Há uma cena emblemática em que Gretchen, após um evento frustrante, olha para a câmara e diz: “As pessoas não me levam a sério.” Não é só um desabafo. É um grito. Quantas mulheres, quantas pessoas dissidentes, quantos candidatos periféricos não gritam isso em silêncio todos os dias, em campanhas invisíveis, apagadas pela lógica do dinheiro e da máquina eleitoral?

A verdade é que a fama, por si só, não basta. Nem sempre gera carisma político, e menos ainda engajamento real. O eleitorado, por mais susceptível ao marketing, sente quando há vazio. E a política exige mais do que imagem: exige narrativa e coerência. Gretchen tentou. Como eu. Como tantos outros. E falhar faz parte. Porque o importante, talvez, não seja apenas vencer, mas perceber que o sistema precisa de ser desafiado. Cada tentativa de se inserir, mesmo sem sucesso, abre pequenas fendas.

O Brasil está cheio de Gretchenes: gente que se cansou de assistir de fora e decidiu participar. Gente que, mesmo sem apelido de peso, apadrinhamento ou aparato, se lança no desconhecido da política com a cara e a coragem. E é essa gente que precisa de ser escutada, mesmo quando perde.

Como jornalista, não poderia encerrar este texto sem registar a nota de serviço sobre a derrota de Gretchen nas eleições. Ela disputou a presidência da câmara da cidade de Ilha de Itamaracá, em Pernambuco, mas obteve apenas 343 votos, o equivalente a 2,85% do total de votos válidos, ficando em terceiro lugar. À sua frente ficaram Paulo Volia, do DEM, com 43,91%, e Rubinho, do PT, que foi eleito com 52,1%, somando 6.266 votos válidos. Durante a campanha, Gretchen chegou a apresentar uma queixa na Delegacia de Plantão de Paulista, alegando que teve o carro apedrejado durante um comício realizado na Praia do Sossego.

O documentário está disponível no YouTube (confira aqui).