“Natal Radical”: não celebrar é também celebrar

“Natal Radical” não celebra o Natal espiritual ou familiar, limita-se a mostrar a sua inevitabilidade como fenómeno social e de consumo, o que, confesso, me agrada bastante
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“Natal Radical” (2004), de Joe Roth

Não sou grande adepto do clima natalício. Desconfio do gorro vermelho, do consenso forçado e dessa obrigação anual de alegria regulamentada. Ainda assim, como qualquer céptico disciplinado, cumpro o ritual mínimo, ver filmes de Natal. Não todos, apenas os menos óbvios, os que prometem algum desvio, alguma falha no verniz festivo. Este ano, pela primeira vez, escrevo uma crónica natalina que não nasce de listas colectivas nem de balanços editoriais. Nasce de um filme que me apanhou desprevenido em 2016, “Natal Radical” (2004), de Joe Roth.

Convém esclarecer desde já, não é um bom filme. Também não é exactamente mau. É, talvez pior do que isso, assustadoramente mediano. Um filme que existe num limbo desconfortável entre a comédia e o sermão, vítima de um argumento tolo de Chris Columbus, adaptado de um romance de John Grisham, que confesso não ter lido nem tencionar ler. Se é fiel ao livro, pouco importa. O filme deve ser julgado pelo que é, e o que é deixa-me permanentemente dividido entre o riso involuntário, a vontade de mudar de canal e a de não comemorar nem ir a festas, preferindo apenas dormir no dia 24.

A premissa é simples, Luther e Nora Krank (Tim Allen e Jamie Lee Curtis), um casal suburbano de Chicago, enfrentam o primeiro Natal sem a filha, Blair, que foi para o Peru como voluntária do Corpo da Paz. Luther, que é contabilista e, como todo o contabilista cinematográfico, ligeiramente obcecado por números, descobre que o Natal anterior lhes custou seis mil dólares. Metade desse valor bastaria para um cruzeiro de dez dias pelas Caraíbas. Conclusão lógica, este ano, saltam o Natal.

E é precisamente aqui que o filme, talvez sem o querer, se torna luzente. A decisão dos Kranks de não celebrar o Natal funciona como uma pequena heresia num mundo em que a data deixou de ser sobretudo simbólica ou espiritual para se tornar uma engrenagem comercial de grande escala, assente no acto de presentear e num espírito de celebração familiar cada vez mais coreografado.

O Natal já não se mede em afectos, mede-se em números. Basta olhar para a realidade fora do ecrã. No Brasil, por exemplo, segundo a pesquisa de Intenção de Compras para o Natal de 2025, realizada pela Confederação Nacional de Dirigentes Lojistas e pelo SPC Brasil, a data deverá movimentar cerca de 84,9 mil milhões de reais na economia, levando 124,3 milhões de consumidores às compras, dos quais 76% planeiam oferecer pelo menos um presente.

Não é difícil perceber, à luz destes dados, porque razão “saltar o Natal” soa tão ofensivo. Os filhos lideram a lista de presenteados, com 58%, seguidos da mãe (46%), do cônjuge (40%), do pai (23%) e dos irmãos (23%). O presente de maior valor destina-se sobretudo aos filhos (28%), depois ao cônjuge (19%) e à mãe (18%). Em média, compram-se quatro presentes, cinco nas classes mais altas, com um ticket médio de R$174. O Natal tornou-se um exercício logístico e financeiro de afecto obrigatório. Recusar participar é visto não como uma escolha pessoal, mas como um ataque à ordem familiar e económica.

Aqui começa o verdadeiro filme, não o do ecrã, mas o mental. Porque a ideia de “saltar o Natal” revela-se, naquele bairro, mais ofensiva do que um crime federal. Os vizinhos, liderados por um Dan Aykroyd em modo chefe de associação de moradores, entram em estado de alerta. Há piquetes no jardim, gritos a exigir a libertação de um boneco do Frosty mantido no porão, e até o jornal local se envolve. Se tivesse vizinhos assim, eu não saltava o Natal, mudava de cidade.

A alegada sátira ao conformismo suburbano podia ter sido divertida. Não é. O filme nunca percebe que os Kranks são as únicas pessoas razoáveis da rua. Pelo contrário, trata-os como hereges a precisar de redenção. O terceiro acto, em que toda a vizinhança se une para impor uma festa de Natal de última hora, depois de Blair decidir regressar inesperadamente, é apresentado como triunfo do espírito comunitário. Na verdade, parece uma distopia alegremente iluminada, onde a cooperação serve apenas para restaurar o circuito do consumo interrompido.

Ainda assim, coisas funcionam. Jamie Lee Curtis, por exemplo. Numa cena improvável num solário, surge de biquíni com um corpo real, envelhecido, sem truques. É um momento estranho e, paradoxalmente, dos mais honestos do filme. Curtis tem energia, humor e uma relação com a filha que consegue, contra todas as probabilidades, comover. Tim Allen, pelo contrário, apesar de começar antipático, acabou por me conquistar. A sua interpretação, a teimosia, a mesquinhice ligeira, o humor seco, fez-me gostar do personagem.

A banda sonora é outro trunfo inesperado, repleta de clássicos natalícios e versões alternativas. Houve momentos em que me apercebi de que prestava mais atenção à música do que ao enredo, que, apesar de tudo, me deixou com um sorriso na boca, talvez a melhor forma de apreciar este filme.

No fim, “Natal Radical” não celebra o Natal enquanto experiência espiritual ou mesmo familiar. Celebra, quando muito, a sua inevitabilidade enquanto fenómeno social e comercial. A mensagem implícita é clara, não destoarás. Seguirás o exemplo. Comprarás, decorarás, presentearás, mesmo que não saibas exactamente porquê. Não há religião, não há transcendência, não há sequer humor consistente, apenas consumo, ritual e a felicidade obrigatória de quem venceu o dissidente.

Talvez seja essa a razão pela qual o filme permaneceu a incomodar-me, mesmo depois de terminado. Não como clássico natalício, mas como um retrato involuntário de um pesadelo comunitário embrulhado em luzes LED e assado com um peru geneticamente modificado para parecer enorme. E, se é para ser sincero, há algo de genuinamente libertador em ignorar o Natal e todas as suas exigências.