Os filmes favoritos de Leão XIV

As escolhas de Prevost revelam um Papa que se sente confortável dentro de narrativas consoladoras e que prefere a fantasia emocional quando confrontado com a violência histórica
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Crédito: AFP Photo/Vatican Media

Certas escolhas culturais funcionam como pequenas janelas para o pensamento de uma figura pública. Não porque revelem um segredo grandioso, mas porque deixam entrever hábitos de formação, alguma sensibilidade estética e até a ideia do que se considera moralmente aceitável num mundo saturado de imagens. Quando o Vaticano divulgou os filmes favoritos do Papa Leão XIII antes do encontro com nomes importantes do cinema, o gesto pareceu, à primeira vista, um pormenor sem grande relevância. No entanto, as listas culturais nunca são inocentes. Funcionam como retratos em miniatura de uma época e de uma personalidade.

A selecção papal inclui Música no Coração” (1965), de Robert Wise, “Do Céu Caiu uma Estrela(1946), de Frank Capra, “Gente Vulgar” (1980), de Robert Redford e “A Vida É Bela” (1997), de Roberto Benigni. Uma lista que poderia figurar num curso introdutório de cinema edificante, daquelas selecções que acreditam profundamente na possibilidade de redenção humana, na força da família e na ideia de que a esperança, se bem cultivada, resiste a quase tudo. Nada de grande ousadia formal, nenhuma ruptura narrativa, poucas sombras. Apenas filmes que procuram, cada um à sua maneira, um certo conforto moral.

É inevitável comparar esta selecção com a do Papa Francisco, que incluía títulos como “Roma, Cidade Aberta” (1945), de Roberto Rossellini, “O Leopardo” (1963), de Luchino Visconti e “A Estrada” (1955), de Federico Fellini. De um lado, uma sensibilidade interessada na complexidade ética do cinema europeu do pós-guerra. Do outro, um gosto mais inclinado para histórias lineares, emocionalmente afirmativas e, em muitos casos, espiritualmente consoladoras. Não se trata de decretar qual dos dois tem melhor gosto, pois o gosto é terreno frágil e sempre discutível. Trata-se, sim, de perceber que cada lista diz algo sobre a forma como esses dois homens se relacionam com a cultura.

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O caso de “Música no Coração” ajuda a iniciar essa leitura. O filme é uma celebração luminosa da música, da disciplina moral e da determinação, envolta num enredo que opõe a inocência familiar à ameaça do nazismo. Não admira que agrade a um líder religioso. Reforça a ideia de que a fé se traduz em coragem discreta e que a ordem espiritual pode conviver com alegria terrena. A escolha não surpreende.

“Do Céu Caiu uma Estrela” funciona quase como uma parábola sobre o valor da própria existência. George Bailey descobre quanto significou para a comunidade ao ver como seria o mundo sem ele. A mensagem é clara, acessível e profundamente alinhada com uma visão cristã do serviço ao próximo. Aqui também há uma coerência evidente entre a história contada e o pensamento de quem a escolhe.

“Gente Vulgar” introduz outra nota, mais contemporânea e menos confortante. É um retrato sensível de uma família ferida, que tenta recuperar-se sem milagres e sem discursos redentores. Uma obra que fala de falhas humanas, mas sem a presença explícita de doutrina. É uma escolha interessante, porque mostra que Prevost não rejeita totalmente filmes que lidam com a dor sem o conforto tradicional da religiosidade.

A questão complica-se com “A Vida É Bela”. A tentativa de Benigni de transformar o Holocausto numa fábula paternal foi, desde a estreia, motivo de divisão. Para uns, é um gesto de amor desesperado. Para outros, uma abordagem falaciosa e afectada, que dulcifica uma tragédia histórica até ao limite da irresponsabilidade. É particularmente sensível que um Papa tenha eleito este filme como favorito, tendo em consideração a relação ambígua da Igreja Católica com o regime nazi ao longo do século XX. Não se trata de acusar Leão XIII de insensibilidade, mas de notar que a escolha cria um desconforto legítimo.

Convém explicar isto de forma didáctica. A representação artística do Holocausto exige um cuidado extremo. A dor não pode ser transformada em cenário sentimental sem risco de distorção da memória colectiva. Quando se tenta transformar o horror em fábula, corre-se o perigo de reduzir a tragédia à escala de um artifício emocional. Não é uma questão de proibir a comédia, mas de reconhecer que certos temas pedem um tratamento mais rigoroso. É aqui que a escolha papal se torna questionável do ponto de vista ético, ainda que não do ponto de vista da sua liberdade individual enquanto espectador.

O episódio mostra que a cultura não é apenas um campo de distração. É um espaço de influência e de responsabilidade. Filmes moldam imaginários e oferecem interpretações do passado e do presente. Quando um líder religioso divulga os seus filmes favoritos, está também a comunicar uma visão do mundo. E essa comunicação tem peso, mesmo que involuntário. O Vaticano disse que Prevost desejava aprofundar o diálogo com os criadores de cinema. A lista, no entanto, não mostra diálogo, mas apenas gosto pessoal. E, quando se ocupa um lugar simbólico como o dele, o gosto pessoal pode ter consequências.

Isto não significa supor malícia onde provavelmente só existe ingenuidade. Significa, isso sim, reconhecer que o cinema continua a ser um espelho inquieto onde todos somos obrigados a ver aquilo que escolhemos amar. As escolhas de Prevost revelam um Papa que se sente confortável dentro de narrativas consoladoras e que prefere a fantasia emocional quando confrontado com a violência histórica. Não é um erro grave, mas é revelador.

E deixa uma lição simples. Um Papa continua a ser um espectador como qualquer outro, sujeito às suas preferências e limitações. Mas, quando essas preferências se tornam públicas, deixam de ser apenas um gosto íntimo e passam a ser sinais de uma visão de mundo. Num tempo em que a memória histórica exige rigor e responsabilidade, talvez se esperasse uma lista que reflectisse não apenas conforto emocional, mas um compromisso mais atento com a complexidade cultural.

No fim, o episódio recorda que nenhuma lista é inocente e que, por vezes, aquilo que parece apenas um conjunto de títulos preferidos diz mais sobre quem a escolhe do que sobre o cinema em si. É essa a força e a fragilidade dos gostos culturais, sobretudo quando vêm acompanhados de uma mitra.