“Papa”: O peso do incompreensível

"Papa", de Philip Yung "Papa", de Philip Yung

Ao longo dos anos, o cinema de Hong Kong construiu uma relação sólida com o género criminal, não apenas através do universo dos thrillers policiais ou das tríades, mas também através de histórias verídicas violentas. Esse interesse pelo “crime real” tem raízes profundas, alimentado por episódios que abalaram a sociedade e suscitaram uma curiosidade quase imediata pelo seu reflexo cinematográfico.

É nesta tradição que se inscreve Philip Yung: depois de “Port of Call” (2015), inspirado num assassinato que chocou a cidade, o cineasta regressa com “Papa” (2024) a este território incómodo, explorando a linha ténue entre crónica judicial e cinema de autor.

A narrativa parte de um caso real que abalou Hong Kong em 2010, quando um jovem de quinze anos matou a mãe e a irmã mais nova após ouvir vozes que lhe ordenavam “eliminar o excesso de população”. Yung transforma este episódio num estudo íntimo da figura paterna. Nin Yuen (Sean Lau Ching-wan), dono de um pequeno restaurante, vê a sua vida desmoronar-se quando o filho Ming (Dylan So) comete o crime.

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O que poderia ser mais um exercício de true crime sensacionalista revela-se aqui como um drama contido, tecido por fragmentos de memórias, visitas à prisão psiquiátrica e um quotidiano que tenta resistir à catástrofe. A estrutura não linear reflete a mente do protagonista: estilhaçada, incapaz de compreender plenamente o ocorrido, sempre a revisitar o passado, à procura de sinais que possam dar sentido ao incompreensível.

Sean Lau oferece uma interpretação ponderada: Nin Yuen não explode em gritos nem em lágrimas fáceis; carrega a dor no corpo, no olhar pesado, na dificuldade em articular palavras diante da tragédia. É acima de tudo um homem preso entre dois polos irreconciliáveis: vítima e pai do assassino.

Por outro lado, Dylan So, na sua estreia no grande ecrã, projeta em Ming a opacidade inquietante de alguém cujo interior permanece inacessível, tanto para o público quanto para a própria família.

Se “Papa” evita os clichés do género, deve-o sobretudo à forma como o realizador filma a dor. Em vez de buscar explicações fáceis ou respostas definitivas para o gesto de Ming, o realizador concentra-se no silêncio que envolve Yuen. A montagem de Jojo Shek organiza o filme em blocos dispersos de tempo, que sugerem mais do que explicam, criando um fluxo inquietante. As longas tomadas, de enquadramentos frontais e despojados, obrigam o espectador a permanecer com as personagens, partilhando os seus silêncios e gestos quotidianos.

Ainda assim, Yung sabe cortar antes que a contemplação deslize para o esteticismo vazio o que resulta no seu equilíbrio delicado entre o rigor documental e o melodrama clássico, ainda que nunca se permita completamente.

Yung não procura reconstituir um julgamento nem decifrar um diagnóstico clínico. O que lhe interessa é algo mais etéreo: como se perdoa o imperdoável, como se continua a viver quando o lar se torna palco da catástrofe.

“Papa” não é sobre crime, mas sobre resiliência e a frágil possibilidade de compaixão. Ao filmar um homem que visita o filho, apesar de tudo, Yung põe-nos a pensar sobre a nossa capacidade de olhar para o outro sem reduzi-lo ao gesto mais atroz da sua vida.

No fundo, “Papa” não fala apenas de um crime, mas daquilo que permanece quando todas as explicações falham. A impossibilidade de compreender o gesto de Ming obriga Nin Yuen (e o espectador) a confrontar um território onde razão e justiça não parecem suficientes.

Permanece a pergunta: como se pode continuar a viver com o intolerável? Yung oferece uma resposta ambígua, que pode frustrar quem procura certezas, mas que deixa ecoar uma inquietação genuína. Porque, por mais que um tribunal encerre um caso, o luto e a compaixão continuam a ser processos sempre inacabados. E é nesse espaço, entre a dor e a necessidade de perdão, que o filme se instala – contido, imperfeito, mas inquietantemente humano.

"Papa", de Philip Yung
“Papa”: O peso do incompreensível
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