“Agente Secreto”: entre os tubarões e os fantasmas da ditadura

"O Agente Secreto", Kleber Mendonça Filho, Ainda Estou Aqui "O Agente Secreto", Kleber Mendonça Filho, Ainda Estou Aqui

Viagem ao fundo da noite das estruturas de apoio à ditadura militar brasileira, aqui já no seu estertor, “Agente Secreto” emergindo como um thriller poderosíssimo que é,  ao mesmo tempo, uma vénia ao cinema de género e à sua memória. Sim, um dos grandes filmes do ano. E o melhor filme que vimos em San Sebastian.

Se o cinema de Kléber Mendonça Filho merecia inscrever-se no melhor da sua geração, então o seu novo filme, Agente Secreto, pode bem saudar-se como um dos mais bravos filmes sobre a memória do cinema brasileiro. Esta é uma ‘Perla’ do festival de Cannes 2025 (onde o filme obteve os prémios de Realização, Melhor Ator para Wagner Moura, além do prémio FIPRESCI, conferido pela crítica internacional) confirmada agora na secção não competitiva do festival de San Sebastián dedicada aos grandes filmes dos últimos festivais (ou seja, Cannes, Veneza e Toronto). Apesar de nem todas as ‘pérolas’ de Cannes, pelo menos algumas que vimos em San Sebastian, merecerem esse elogio. Mas isso é outra coisa.

Acutilante na observação político-social da realidade brasileira do final dos anos 70 – em particular, no Recife, a sua cidade natal -, Kléber convida-nos a enxergar com algum cuidado uma realidade que, por vezes, aparece como algo difusa, obtusa mesmo. Nomeadamente, através do alcance dos tentáculos da ditadura fascista e indiferente.

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Genial a resposta de Kléber a apresentar-nos, de forma muito subtil, um ternurento gato, embora bicéfalo. Ora, gradualmente, este elemento – que pode ser encarado também como uma chamada de atenção, para abrir os olhos – ajusta-se a esta saborosa viagem de múltiplas narrativas e subplots que nunca nos faz olhar para o relógio ao longo dos 160 minutos de filme.

Estamos em 1977, no Recife, durante o estertor da ditadura militar, ainda em plena histeria de “Tubarão”, de Spielberg. Aliás, o filme salta até para a realidade, a partir do momento em que é encontrado um tubarão perto da costa (algo não incomum no Recife), com uma perna humana no seu interior; e entra mesmo na hiper-realidade, quando essa perna ganha vida e começa a atacar o bas fond local, numa homenagem clara no cinema de género e série B, bem como aos mitos urbanos explorados pela imprensa sensacionalista. Ou até ao giallo, numa sequência de ação poderosa, sangrenta, em mais um quadro de cinefilia, i.e., o amor pelo cinema (e de uma época) que por aqui fica vertido.

Em plena euforia festiva (mas igualmente violenta) do Carnaval, já com quase uma centena de vítimas, seguimos as personagens de Wagner Moura, qual gato de duas caras. Ele é Marcelo (mas também, Armando, na clandestinidade), investigando a identidade e a memória da mãe. Acabará por ir trabalhar no registo civil, uma instituição controlada por Euclides, um polícia corrupto, mas só depois de ver o seu projeto de investigação académica abortado por outro escroque municipal.

Sim, bem vistas as coisas, este é um filme sobre cinema. E com várias referências a salas de cinema, numa piscadela de olho ao seu filme precedente, “Retratos Fantasmas”, onde Kléber evoca essa herança das salas de cinema da sua cidade natal. E é também na parte derradeira da película que Kléber nos remete para o presente, onde duas jovens de deparam com as gravações (já antes afloradas, en passant, em sequências alternativas). Pois é precisamente o passado de Marcelo (ou de Armando) que é igualmente investigado, como se tratando se um inquérito policial ao passado.

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