“As artes do cinema e da poesia dificilmente podem ser dissociadas. Filmes que se inspiram em poemas, poetas que partiram de ideias de cinema, ou cineastas que ancoraram na palavra poética a sua fórmula mais profunda – são apenas alguns dos sentidos desta relação interdisciplinar.”
Porque é que é importante falar de cinema e poesia? Um cineasta e um poeta podem ter mais em comum do que se julga. O poeta e o cineasta são lutadores. Lutam contra quem? Contra o quê? Se gostamos tanto de poesia, porque é que nos defendemos dela? E das cenas longas nos filmes de três horas? A arte não pode ser mais violenta do que a ignorância.
A segunda edição da exposição “Sobre um filme, sobre um poema” apresenta um verdadeiro manifesto; uma união entre duas heranças que incendeiam a alma. No cinema, nem sempre a palavra e a poesia são vistas a olhu nú, mas estão sempre lá, mesmo que em desequilíbrio. O que seria do cinema mudo se ignorássemos esta ausência? Se a representação, a teatralidade, não significam nada mais do que mostram, então para quê questioná-lo? Porque a palavra é imagem. Também não podemos ignorar a afiliação da literatura e do cinema – da qual uma parte do público também se defende, chegando, por vezes, a preferir ler ou ver um em prol do outro.
Quanto a esta questão, subscrevo as palavras de Manoel de Oliveira quando refere que “o cinema, sendo uma síntese de todas as artes, não quer dizer que as copie a todas. Recria-as a todas, e a todas elas dá uma nova forma, uma nova perspetiva, um novo encaixe, um outro olhar, enfim um renovar na invenção de transposição em transposição e de filme para filme.” (Ditos e Escritos, p.108). O cineasta (re)cria, (re)constrói, aponta.
Para Agnès Varda, há três palavras que são essenciais: inspiração, criação e partilha. A primeira, na sua ótica, é a que inicia a coluna vertebral do seu processo fílmico – Porquê fazer o filme? Quais os motivos? Quais as ideias? A partir daqui, o seu cinema começa a ganhar forma. Todos merecemos alguém que olhe para nós da mesma forma que Varda olha para o seu objeto. O seu cinema é um cinema de empatia; os seus documentários são sinónimo de compaixão – verdadeiras cartas poéticas ao ser humano. Poderia dizer que é na fase da “partilha” que este afeto da sua parte se enquadra, mas isso retirar-lhe-ia não só a beleza, como todo o mérito e significado. O olhar de Agnès não precisa de ser desdobrado como num policial nem como nos planos de Oliveira – onde tudo se esconde e revela nos planos mais mais enigmáticos- mas sim como se estivessemos numa aula onde a única lição é aprender a trocar de lugar com o outro; a ver beleza nas coisas mais simples.
Na exposição, o seu filme “Les glaneurs et la glaneuse” (2000) é um dos alvos da obra poética reunida. É este o famoso filme que associa a realizadora à “batata em forma de coração”. Posso começar já por aqui. Para quem nunca viu o filme, de que serve uma batata em forma de coração? Para uma fotografia, uma partilha nas redes sociais, talvez. Quem está mais familiarizado, associa essa imagem à realizadora, e, se formos mais longe, à sua excitação ao dizer “le coeur, le coeur!”, baixando-se para filmar as batatas de perto. Está aqui um caso onde uma simples imagem originou uma sequência na imaginação de quem viu e de quem lê. Os seus documentários são íntimos, profundos, preocupados em representar o quotidiano. Nas palavras da própria (Agnès Varda on making documentaries), o ego tem de ser deixado de lado. Toda a gente precisa de diálogo, de conversar. A cineasta valoriza a intelectualidade de quem nunca estudou, intelectualidade essa que geralmente é subestimada socialmente, chegando, por vezes, a ser marginalizada. Pessoas mais velhas, por exemplo – por reconhecerem que foram privadas do ensino escolar mais avançado pelas dificuldades do quotidiano- sentem-se inferiorizadas em conversas cujos assuntos não lhes dizem nada. Varda tem consciência desse sentimento, entregando-lhes um espelho para que elas se vejam a elas próprias como a realizadora as vê. O que é a inteligência? É um conceito subjetivo; múltiplo, cheio de ramificações.
No fundo, o que a sua lente vai realçar é o seguinte: Se propusemos aos nossos avós que escrevam um ensaio filosófico sobre as grandes teorias da física, estes – no mínimo – terão dificuldade em concretizá-lo, valorizando, em contrapartida, a inteligência dos netos que estudam e que o conseguem fazer. Mas se a proposta for diferente, sobre assuntos que os nossos avós dominam, temas dos quais não conseguem abdicar, uma vez que tratam da sua própria vida e sobrevivência – algo tão “simples” como a agricultura – provavelmente serão capazes de realçar aspetos técnicos – matemáticos, geográficos, químicos etc- da maior relevância, com uma velocidade de raciocínio e lógica surpreendentes.
São estas pessoas, tantas vezes menosprezadas, que sustentam não só a economia, como a qualidade de vida do todo. Tal como nos versos do poema “4. Maria Lis: Les glaneurs et la glaneuse: “vi-as construir pilhas de grãos/trepar por elas em luta de classes/do nascer ao pôr do sol como inscrito na lei.” É com esta consciência política, modesta e inteligente, que Agnès coloca um holofote nas lutas das comunidades mais marginalizadas, das quais a sociedade, para a sua própria manutenção, não pode prescindir. O sentimento de amizade para com o outro, a valorização da simplicidade da vida, são o verdadeiro vetor de inclusão.
E está claro: não podemos falar de Agnès Varda sem falar do seu ativismo político. Não podemos ignorar a feminista que tentou ser uma feminista alegre, mas que esteve demasiado furiosa para tal. A sua arte de contemplar, filmar e apontar exprime a sua curiosidade face ao mundo. A palavra inspiração obriga-a a questionar; a sinalizar os problemas sociais. Através da partilha, o sentimento – o cinema- materializa-se. Varda abraça a liberdade, quebra os estereótipos – é a cineasta que filma o seu tempo, mas que está à frente desse mesmo tempo.
Quanto ao seu filme “L’une chante, l’autre pas” (1977) – um hino íntimo que canta a solidariedade, amizade e união feminina – o seu ativismo não se manifesta apenas pelo seu interesse no outro, mas também por representar “uma luta de dez anos.” (Filmmaker profile: Agnès Varda).
Mais tarde, no documentário realizado com JR “Visages, Villages” (2017), percebemos que a sua essência, a sua consciência social, não mudou – “e vejo-te pentear o cabelo que como as tuas mãos agora/ te lembra que o fim está perto, mas antes/vejo-te em expedições com gente de avental/guardar tudo o que tenha forma de coração.” A colecionadora de imagens, memórias e conexões inspira-se nas ruas, sabendo que o caos está à vista de todos.
Provavelmente é por isso que damos tanta importância aos “recortes de dentro de/ envelopes de dentro de pastas de dentro/ as coisas inúteis”. A inutilidade das coisas… “Agnès, vejo-te filmar uma mão com a outra”. Vestida de batata no Festival de Veneza (2003), com o seu cabelo de duas cores, Varda estende-nos a sua mão e pede para mudarmos de perspetiva. Com esta exposição, o Batalha Centro de Cinema e Diogo Vaz.